sábado, 29 de abril de 2017

PARA QUANDO UM ROTEIRO DE FONTES PORTUGUESAS PARA A HISTÓRIA MILITAR?



Em 2010, o meu amigo João Vieira Borges desafiou-me a colaborar num número especial da Revista de Artilharia que seria dedicado à Guerra Peninsular, que veio a ser publicado em Setembro desse ano. Aí está incluído um texto da minha autoria intitulado “A Artilharia Portuguesa na Guerra Peninsular - Um projeto para um roteiro de fontes primárias”. O trabalho compõe-se de duas partes, uma de enquadramento da questão e outra de um anexo em que tentei relacionar os livros com interesse para a história da Artilharia no período alargado de 1641 a 1876 incluídos no Fundo 5 do Arquivo Histórico Militar (Livros de Registo Antigos).
A proposta que então fazia era muito clara – a criação de um grupo de estudos com a finalidade de iniciar um roteiro de fontes para o estudo da Artilharia portuguesa. Acho que caiu em saco roto, e daí o título com que agora apresento a primeira parte do texto.
O original está disponível no sítio da Revista de Artilharia.


Aspeto de uma sala do Arquivo Histórico Militar, podendo observar-se
 os livros da Fundo 5, Livros de Registo Antigos, fundamentais
para o estudo da participação portuguesa na Guerra Peninsular."


Desde o início da Revolução Francesa, os governos europeus sabiam os perigos que se aproximavam. Com a ascensão de Napoleão, a ameaça ficou mais clara.

No concerto europeu pertencia à Inglaterra a condução da oposição às pretensões de Napoleão. Portugal (como outros países) não encontrou forma de satisfazer ambos os lados.

Os acontecimentos encarregaram-se de levar D. João VI para o Brasil, a coberto de um acordo com a Inglaterra, e de trazer as tropas francesas até Lisboa, com direito a serem bem recebidas.

A ambiguidade durou pouco. Em menos de um ano, entre finais de 1807 e Agosto de 1808, concluiu-se a primeira invasão francesa (se, no contexto das pretensões franco-espanholas não incluirmos a anterior invasão de Portugal de 1801). Junot, com o seu exército da Gironda, atravessou a Espanha, entrou pela Beira Baixa, passou o Zêzere e entrou em Lisboa com um exército exausto, quando a esquadra britânica se afastava da costa levando o príncipe regente e mais 15.000 pessoas fugidas às tropas e ao “terror” napoleónico.

Para se chegar à Convenção de Sintra de 30 de Agosto de 1808, tinha sido necessário que as forças franco-espanholas ocupassem Portugal, que o exército inglês desembarcasse na Figueira da Foz, que se travassem os combates da Roliça e do Vimeiro, em que os franceses foram derrotados, que os povos de Portugal e de Espanha se revoltassem contra os franceses, e que os ingleses não fizessem questão de salvaguardar a honra portuguesa, mas apenas os seus efetivos militares.

Com a chegada de novas forças à Península Ibérica, tanto francesas como inglesas, um dos polos fundamentais da grande estratégia dos contendores transfere-se para a Península, constituindo-se, a pouco e pouco, uma força anglo-portuguesa-espanhola que, a partir de 1809, iniciou um grande movimento de contraofensiva e perseguição às tropas francesas, obrigadas a recuar a partir do Porto, Buçaco, Linhas de Torres, Sabugal (em território português), e depois Fuentes de Oñoro, Badajoz, Albuera, Ciudad Rodrigo, Salamanca, Vitória, San Sebastian, Pirinéus (em território espanhol), entrando finalmente em França, a partir de Julho de 1813.

Esta Guerra Peninsular, como prefere a historiografia inglesa, Guerra da Independência, como a Espanha a entende, ou as Invasões Francesas, como a época é vista pela parte portuguesa, constituiu um teatro de operações militares de notáveis experiências e de grandes ensinamentos, tanto em termos de tática, como de emprego das forças, logística, manobra, recrutamento, relação com as populações e todos os demais domínios da ciência militar.

É por isso que, passados 200 anos, se continuam a publicar estudos em número pouco vulgar, suscitando o período os mais diversos pontos de vista. Quase se pode dizer que parece inesgotável a matéria para novas abordagens.

O estudo das campanhas da Guerra Peninsular proporciona um melhor conhecimento não apenas dos aspetos militares da época, mas também da sociedade, das relações entre as nações e do pensamento e atitudes dos vários intervenientes. Em relação aos assuntos militares, a questão da artilharia e do seu uso não é dos temas que tenha merecido mais atenção historiográfica, embora sejam inúmeros os estudos efetuados.

Por isso há ainda bastante trabalho a fazer, mesmo no que respeita à participação da Artilharia portuguesa nestas campanhas. Interessa-nos aqui focar sobretudo a utilização de fontes primárias para fomentar estudos que ainda não foram feitos.


Em primeiro lugar, a questão das fontes primárias para o estudo da Artilharia na Guerra Peninsular deve pôr-se ao nível da própria Guerra Peninsular e dos fundos documentais que lhe dizem respeito, dispersos por muitos e diversos Arquivos e outros organismos.

Em Portugal, devemos começar pelos Arquivos militares, em especial o Arquivo Histórico Militar, onde se concentra grande parte da memória documental desta época, em especial no que respeita ao Exército Português. A documentação disponível é imensa e a sua abordagem sistemática podemos dizer que mal começou.

Uma parte importante desta documentação está disponível on-line através da base de dados do AHM chamada “Da Guerra Peninsular à Regeneração”, acervo com cerca de 1.300.000 imagens, sendo que mais de 30% dizem respeito ao período da Guerra Peninsular. Neste enorme arquivo, encontram-se milhares de documentos respeitantes à Artilharia (1).

Mas o acervo mais importante sobre a Artilharia deste período (que pode alargar-se a parte do século XVIII e prosseguir até ao terceiro quartel do século XIX) existente no AHM é constituído pelos fundos dos “Livros de Registo Antigos” e dos “Livros Mestres”.

O fundo dos “Livros de Registo Antigos” é constituído por uma coleção de livros de registo de correspondência, atos administrativos, financeiros e contabilísticos de diversas organismos e unidades militares. Como se diz na apresentação do respetivo catálogo, “os livros de registo, pela natureza da sua finalidade no sistema burocrático dos órgãos a que pertenceram e pela cuidadosa preocupação de transcrição integral dos textos da documentação recebida, expedida e produzida, acabaram por se transformar em testemunhos documentais de extraordinária relevância. De facto, eles oferecem ao investigador, de uma só vez, acesso aos conteúdos de séries documentais completas, cujos originais andam dispersos, não se encontram, ou simplesmente desapareceram” (2). 

Nesta enorme coleção de 3.712 livros de registo, encontramos 320 livros relacionados com órgãos ou unidades de Artilharia, respeitantes ao período de 1641 a 1876. Com informação sobre a Guerra Peninsular temos, pelo menos, 32 livros.

Desta coleção juntamos, em anexo, uma lista dos livros respeitantes ao estudo da Artilharia para todo o período.

Por seu lado, a coleção dos “Livros Mestres”, que constituem os livros de registo da vida dos órgãos e unidades militares, no que respeita essencialmente ao seu pessoal, mas muitas vezes também a material e animais, representa uma das mais impressionantes coleções do Arquivo Histórico Militar, com cerca de 7.500 livros, entre o século XVII e 1910, altura aproximada em que foram substituídos pelo chamado “Registo Geral”.

Aqui podemos seguir a vida das unidades e órgãos militares, quase diríamos dia a dia, já que neles eram registadas todas as informações respeitantes ao seu pessoal, assim como as alterações ocorridas.

A estas duas coleções fundamentais deve acrescentar-se a documentação dispersa por diversas Secções arquivísticas e também a respeitante aos fundos próprios dos órgãos e unidades de Artilharia, que se foram constituindo e que hoje são memória do Exército Português. Sem esquecer, evidentemente os processos individuais dos militares que serviram no Exército, sendo de especial interesse os dos oficiais de Artilharia, desde o início do século XIX e muito irregularmente da segunda metade do século XVIII.

Contudo, o estudo das fontes primárias da Artilharia Portuguesa não pode ficar-se pelo Arquivo Histórico Militar. Os Arquivos portugueses, desde o Arquivo Nacional da Torre do Tombo, passando pelos Arquivos Distritais e acabando nos Arquivos Municipais, todos têm (ou podem ter) arquivos militares e certamente referências à Artilharia, em especial se tivermos em conta os municípios e distritos onde unidades de Artilharia tenham tido a sua sede.

O trabalho a realizar poderia constituir-se num elemento essencial de um roteiro de fontes militares dos Arquivos portugueses, projeto que poderia ser assumido pela Comissão Portuguesa de História Militar ou outra estrutura do Ministério da Defesa Nacional, em colaboração com os Ramos das Forças Armadas através dos seus órgãos culturais.

E, ainda assim, o acesso às fontes primárias para o estudo da Artilharia Portuguesa, como parte relevante do Exército da Guerra Peninsular, não estaria completa, pois deveria contar-se com algumas fontes estrangeiras de grande importância.

Como refere o historiador António Pedro Vicente, existe um manancial riquíssimo de fontes, “nomeadamente em Espanha, França e Inglaterra”, assim como, acrescentamos nós, no Brasil, onde o fundo “Negócios de Portugal” pertencente ao Arquivo Nacional do Rio de Janeiro e referente à presença de D. João VI no Brasil reúne um vastíssimo conjunto documental decerto também importante para a história militar de Portugal.

Seguindo as informações do mesmo autor, que demoradamente contactou com os arquivos franceses do período napoleónico para os seus estudos, “é nos arquivos do Ministério da Guerra, em Vincennes, que encontramos o maior número de documentos que interessam ao nosso século XIX”, completando depois a sua informação – “Todos estes documentos estão depositados nos Archives Historiques du Ministère de la Guerre, em Vincennes, na secção de Mémoires et Reconaissances du Portugal, ocupando os códices 1354 a 1369” (3).

Em Inglaterra são muitos os arquivos que guardam memórias da Guerra Peninsular. Em primeiro lugar existe um fundo que de há muito está reconhecido como importantíssimo para o estudo da época e também para um mais profundo conhecimento da presença de Wellington em Portugal. Trata-se da coleção The Wellington Papers, depositados na Biblioteca da Universidade de Southampton. Já está disponível on-line uma base de dados referentes a este arquivo, mas infelizmente ainda muito incompleta, pois não ultrapassa o ano de 1808. Diferente é a situação da coleção dos Wellington’s Dispatches, que podem ser consultados diretamente, p.e., na página do The War Journal.

Contudo, outros acervos documentais podem ser acrescentados ao projeto, incluindo coleções depositadas na British Library e nos Arquivos Nacionais.

Também em Espanha se encontra um importante manancial de documentação original referente a esta época e com interesse para a história militar de Portugal. Ainda recentemente o historiador António Ventura publicou os planos espanhóis de invasão de Portugal na transição do século XVIII para o XIX (4).

Será ainda conveniente procurar conhecer alguns arquivos americanos, incluindo os de algumas universidades, onde muitas vezes somos surpreendidos com a existência de fundos e coleções documentais inesperados, mas importantes para a investigação sobre temas militares, em especial da época contemporânea.

Embora um projeto de levantamento de fontes primárias como o que propomos devesse ser iniciativa conjunta, abarcando toda a documentação com interesse para a história militar, a verdade é que está sempre em aberto que possa iniciar-se por um estudo parcial. Não nos parece por isso descabido que a Revista de Artilharia possa iniciar esse projeto, com especial incidência na documentação com interesse direto para a história da Artilharia, podendo assim abrir um caminho que outros viriam naturalmente a seguir.

Também faria todo o sentido começar pelos arquivos mais acessíveis, como o Arquivo Histórico Militar, onde será necessário efetuar um trabalho moroso, que bem poderia servir de modelo para outros que se seguissem.

O problema poderá estar em encontrar uma equipa disponível, mas estou certo que entre tantos e tão valorosos artilheiros, em especial entre os que se encontram na situação de reserva e reforma, não será difícil constituir um grupo que se dedique a sistematizar e a dar a conhecer as fontes documentais para a história da sua Arma, organizando um instrumento moderno de estudo, acessível a todos. Prestaria com isso um serviço de reconhecido interesse, não apenas para a Arma, mas também para a comunidade científica e académica. Seria mais um ato de prestígio para a Artilharia Portuguesa.

 .....
    (1) Ver a base de dados em: http://www.infogestnet.com/
(2)     Livros de Registo Antigos (1625-1910), Fundo 5, Inventário. Lisboa: EME/AHM, 2005, p. 33.
(3)     António Pedro Vicente, O Tempo de Napoleão em Portugal – Estudos Históricos. Lisboa, Comissão Portuguesa de História Militar, 2000, p. 33.
(4)     António Ventura, Planos Espanhóis para a Invasão de Portugal (1797-1801). Lisboa: Livros Horizonte, 2006.



sábado, 22 de abril de 2017

PARA MIM, O 20º ANIVERSÁRIO DO 25 DE ABRIL FOI DIFERENTE



Quando comemorámos os 20 anos do 25 de Abril, em 1994, a A25A encarregou-me de fazer a comunicação principal na sessão solene.

Foi esta a comunicação que apresentei:



Meus camaradas de Abril,

Encarregou-me a Associação de falar nesta cerimónia de abertura das comemorações do vigésimo aniversário do 25 de Abril. Que o fizesse como participante e capitão de Abril e como estudioso (do ponto de vista da História) do facto que comemoramos.

Ao fazê-lo, agradeço penhorado a confiança da Associação e procurarei, dentro das limitações que me são próprias, tecer algumas considerações que presumo relevantes.

Cartaz comemorativo do 20º aniversário do 25 de Abril,
edição da A25A, autor Júlio Pomar.

Temos perante nós um acontecimento histórico, realizado há vinte anos, por um grupo alargado de militares. O facto concreto, ocorrido a 25 de Abril de 1974, relaciona-se historicamente com a deposição, através do uso da força, do regime então vigente. Na História das sociedades, há factos destes – definidos, concretos, incontornáveis. Mas não há factos históricos isoláveis. Eles estão sempre numa sequência de outros factos, precedentes e consequentes, tanto igualmente localizáveis, como impercetíveis ao observador desatento. Quando nós, membros de uma civilização, de uma sociedade, de uma comunidade, nos movimentamos, arrastamos pelo caminho marcas profundas, sinais extensos, heranças longínquas. O que é verdadeiramente aliciante na compreensão da trajetória histórica do homem (individual ou social) é a tentativa de penetrar nas esferas de influências mútuas, discernindo o breve tempo de um facto com o peso da sua específica intensidade e a dimensão de outros tempos, de duração variada e interferência complexa.

O 25 de Abril de 1974, que vamos comemorar é, em si, um facto breve de volumosa espessura. Não tem, em larguíssimo tempo histórico, antes ou depois, outro facto que possa sobrepor-se-lhe em termos de influência sobre o destino do homem português.

Aliás, comparável em termos de brevidade e espessura histórica, só existirão meia dúzia de dias na História de Portugal. Será a assinatura do Tratado de Zamora que inicia formalmente a existência de Portugal, a vitória de Aljubarrota, que adia por duzentos anos a união ibérica, a conquista de Ceuta, que lança Portugal na aventura dos novos mundos, a Restauração, que recupera, para sempre, a independência perdida sessenta anos antes, a Revolução vintista, que proscreve o Antigo Regime, e a implantação da República, que extingue um sistema com mais de 750 anos.

O estudo histórico tem a fantástica capacidade de permitir viajar no tempo. É certo que o historiador, como homem, cidadão e participante do seu próprio tempo, não pode, material e espiritualmente, deixar de carregar a canga da época em que vive, mas pode, quantas vezes recorrendo a um engenhoso esforço de imaginação, colocar-se em pontos variados da fita do tempo, permitindo-se perscrutar o passado ou olhar o futuro, cujo desenlace afinal já conhece. Esta é, quase sempre, a tarefa do historiador: escolher um ponto no tempo e, a partir daí, encontrar as linhas convergentes que conduziram a esse ponto e explicar como ele se projetou e que consequências ou marcas deixou na sociedade em que ocorreu. Contudo, quanto mais coincidência houver entre o ponto escolhido e um facto histórico marcante (ou quando rigorosamente coincidirem - o que não é raro nas opções dos historiadores), mais longos devem ser os recuos e os avanços no tempo objeto de estudo, porque são os factos marcantes que mais prolongadamente interferem no processo histórico da sociedade.

Quero com isto dizer que observar o 25 de Abril de 1974, sob o ponto de vista da História, requer necessariamente um recuo profundo e um avanço prolongado no tempo da sociedade portuguesa.

Requer sem dúvida a análise do regime que o tornou inevitável, da sociedade que o fundamentou, do grupo que o concebeu e dos homens que o executaram. Mas requer igualmente a análise do regime que gerou, da sociedade que lhe sucedeu, dos grupos e dos homens que souberam (ou não souberam) potenciar as oportunidades dele saídas. Mas como os momentos altos da História se repercutem extensamente, é sempre com cautelosa ponderação que os historiadores se aventuram nas análises dos tempos recentes.

A ciência histórica impõe a inquestionável exigência da imparcialidade. E embora fazer história seja sempre fazer escolhas, é com verdadeiro zelo que se procura a objetividade das opções. Nenhum historiador de mérito tentará menosprezar a importância histórica do 25 de Abril de 1974. Poderão explicar, interpretar ou entender de forma diferente o complexo histórico que justificou a sua emergência ou analisar distintamente o processo a que deu origem. Mas todos têm estado concordantes, em relação à decisiva importância da ação militar que marcou o reinício da democracia em Portugal.

Por nós, que jamais ousaremos tomar o título de historiador, respeitando embora os princípios essenciais do labor histórico, não enjeitamos a deliberada opção pelos traços que fazem do 25 de Abril o passo primordial da recuperação da nossa liberdade e da implantação da nossa democracia. Também não escondemos, correndo o risco da história apressada (mas tranquilos por sabermos do seu carácter provisório), que duas causas principais estiveram na base do movimento militar que conduziu ao 25 de Abril: a guerra colonial e (afinal, causa da causa, ou talvez causas de influência mútua) a natureza do próprio regime do chamado "Estado Novo". Se quiser agora, ultrapassando porventura as normas difusas da ciência histórica, mas optando por um pensamento empenhado, saber da justiça da causa que guiou os capitães de Abril, deveria perguntar: Quem optaria por voltar a um regime autoritário, de verdade única, de absoluto controlo da pessoa humana? Quem gostaria de voltara um regime de um só partido, depositário dos únicos valores válidos? Quem desejaria reconstituir um sistema liberticida, onde os direitos e as garantias dos cidadãos se concebam em função do próprio sistema e dos seus próceres? Quem admitiria o regresso da polícia política, da ameaça permanente, das perseguições, do esmagamento das oposições, das prisões políticas, dos tribunais plenários, das medidas de segurança, da militarização da juventude e do cidadão? Quem suportaria de novo a censura, a propaganda, a polícia do espírito? Quem toleraria de novo o regime da "superstição das obras", feitas à custa da dignidade dos cidadãos? Quem permitiria o regresso do regime da emigração massiva, da ignorância, do medo, da doença, do analfabetismo e da pobreza? Quem conseguiria viver hoje num país isolado, acerbamente criticado e condenado nas mais diversas instâncias internacionais? Quem desejaria voltar ao regime da guerra?

A guerra. Detenhamo-nos um pouco sobre a questão da guerra. A História tende a deixar esfriar os factos para os incluir nas suas preocupações. É um erro que a sociedade seja arrastada pela mesma tendência. A guerra afetou diretamente cerca de um milhão de portugueses e indiretamente poucos terão sido os que lhe ficaram completamente imunes, isto durante um longo período de treze anos. Chega a ser incompreensível como podemos encerrar dentro de nós próprios, com fecho de sete chaves, a memória de um tempo tão marcante. Como se a guerra fosse uma vergonha individual ou um peso de consciência de cada um de nós. As guerras, podendo ser de natureza diferente, têm todas as mesmas características: são violentas (não é a guerra o uso da violência na máxima escala?), mortíferas e suscetíveis de encobrir fenómenos que excedem o direito e a razão. A guerra (e a guerra colonial é bem um exemplo disso) resulta de uma decisão política. Não são as Forças Armadas que fazem a guerra. As Forças Armadas cumprem missões de guerra. Também não fazem a paz - implementam acordos ou decisões de paz. Não é por isso razoável julgar as Forças Armadas e os seus membros, da mesma forma que se deve julgar o regime político que prolongou irracionalmente a guerra. De facto, as Forças Armadas, com imenso esforço, sacrifício, inteligência e capacidade, deram ao poder político treze anos de folga, de espera, de cobertura, para encontrar uma solução política, negociada, aceite internacionalmente. Como é possível que as Forças Armadas demonstrem hoje injustificadas suscetibilidades relativamente à sua participação na guerra, quando, no cumprimento do seu dever profissional, demonstraram possuir capacidades de excecional valor, que lhes permitiram resistir para além do que seria razoável e justo pedir-lhes? Como podem as Forças Armadas sentir-se hoje questionadas, quando se condena o excessivo prolongamento da guerra colonial ou mesmo a sua emergência?

É bem certo que foram os capitães de Abril que impuseram, mesmo contra a opinião de outros militares, o fim das hostilidades nas colónias portuguesas. Mas nenhum militar, mesmo daqueles que não estiveram empenhados no 25 de Abril, com razoável ponderação, pode continuar a sustentar a justeza da política colonial do regime derrubado. O 25 de Abril, relativamente à guerra, veio impor uma solução com muitos anos de atraso. É este atraso (e em História os atrasos pagam-se normalmente muito caro), que justifica amplamente as soluções de estreita manobra política conseguidas para o processo de descolonização. Soluções que, apesar de tudo, deixaram em aberto imensas possibilidades de cooperação, só muito fugazmente aproveitadas, desde então até à atualidade.

Em suma, os capitães de Abril, através de um complexo processo de aproximação e envolvimento coletivo, acabaram por tomar consciência do cruzamento dos dois erros que referimos - a natureza do regime que oprimia os portugueses e a injustiça e inutilidade de prolongar uma guerra sem sentido. Foi essa consciência que os conduziu ao 25 de Abril. Quando ocorrem roturas a este nível, salva-se, historicamente, quem mais oportunamente compreende as contradições em que está envolvido e encontra para elas uma solução. É essa a grande virtude do Movimento dos Capitães.

No Movimento dos Capitães, como trabalhos de natureza sociológica já realizados o demonstram, estiveram representados todos os grupos sociais incluídos nas Forças Armadas - aí estiveram filhos de agricultores, de profissionais liberais, de militares, de proprietários, de funcionários públicos, de comerciantes, de empregados qualificados, de operários e artesãos. A sua composição social acaba por ser o espelho da própria sociedade portuguesa, o que de alguma forma reflete a vontade dessa sociedade. De facto, mudar o regime e pôr fim à guerra era, isso sim, um verdadeiro "imperativo nacional', que os militares de Abril cumpriram como um dever e que a História para sempre reconhecerá.

Resta-nos agora, colocados que estamos num ponto fulcral da história portuguesa recente, em 25 de Abril de 1974, espreitar o futuro que com ele e a partir dele fomos construindo, em Liberdade. A liberdade, retomada pelo povo português a partir de 25 de Abril de 1974, é o fundamento do regime atual. Mas a liberdade, por si, não soluciona os problemas de uma sociedade. São os cidadãos, munidos da liberdade como instrumento, que transformam o sistema a que pertencem, que interferem nos caminhos do seu próprio destino, que se aproximam das soluções mais desejadas. Não há liberdade sem cidadãos, como não há cidadãos sem liberdade. Os capitães de Abril, compreendendo-o desde o início, souberam, num gesto historicamente incomparável, deixar nas mãos dos cidadãos, o que aos cidadãos pertencia.

Não podemos lamentar o regime da liberdade. Devemos, sobretudo, intervir, a partir da nossa liberdade. Propor, transmitir, lutar pelos valores em que acreditamos; denunciar os abusos, os esquecimentos, os desvios; participar na mudança, na alternativa, na diferença. Ser livre, verdadeiramente livre, é talvez mais difícil do que o não ser - no que exige de responsabilidade, de empenhamento, de esforço quotidiano. Mas é isso a essência de um regime baseado na liberdade, de um regime democrático. Em democracia não deve haver cidadãos isolados ou isoláveis. E quando os cidadãos tendem a isolar-se ou a renunciar à relação com outros, é porque a democracia está começando a degradar-se. Duas liberdades isoladas podem, no limite, anular-se; duas liberdades conjugadas potenciam a Liberdade e movem a sociedade.

A democracia portuguesa, filha do 25 de Abril, é demasiado jovem (sobretudo, do ponto de vista da História de Portugal) para que possamos, sob qualquer pretexto, considerá-la esvaída ou exausta. A democracia, com 20 anos de existência, é já, para a nossa geração, um raro privilégio na história portuguesa. Cabe-nos, a todos, fazer do 25 de Abril de 1974 um verdadeiro ponto de viragem e inflexão da nossa história comum, como o dia em que varremos, em definitivo, da herança dos portugueses, as lágrimas de mais opressões.

A História, ciência do homem, assinalará o facto em páginas brilhantes.


Obrigado.


sábado, 8 de abril de 2017

FOI O ESTADO NOVO TRAÍDO, EM ÁFRICA?



Em 2009, participei num colóquio do Instituto de Defesa Nacional, onde apresentei uma comunicação com o título “Guerra Colonial – Uma Aliança Escondida”. O assunto respeitava ao acordo “Alcora” que foi assinado em 1970 entre Portugal, a África do Sul e a Rodésia. Mais tarde, eu e o Carlos de Matos Gomes publicámos um livro onde desenvolvemos o tema e que se chama “Alcora, o Acordo Secreto do Colonialismo”. Esta foi a primeira vez que um público mais exigente ouviu falar de tal acordo e alguns dos assistentes tiveram dificuldade em aceitar a realidade. Mas nós já tínhamos falado no assunto num colóquio em Faro em 2008, aí sim a primeira vez que o assunto foi tratado em público.
Depois a investigação seguiu o seu curso e hoje é assunto bastante debatido, embora deixe ainda perplexos muitos dos que tomam contato com esta face do regime português.
O texto foi depois publicado na revista “Nação e Defesa” e fica aqui com um novo título.


Capa da 2ª edição do livro "Alcora, o Acordo
 Secreto do Colonialismo", 2016. 

1. Na primeira fase da guerra colonial, o regime português estava convencido que seria capaz de encontrar uma solução para a agitação interna de Angola e de construir uma via capaz de extinguir o problema. Portugal era um país colonial experiente e, de uma forma geral, sempre encontrara soluções, mesmo quando foi necessário mudar.

Para o regime, os acontecimentos de Angola eram mais uma expressão da influência externa, vinda do Congo, e fomentada pelo comunismo, do que uma vontade saída das elites negras angolanas, que o regime bem sabia serem praticamente inexistentes.

A equipa que foi nomeada, com Venâncio Deslandes para Angola, Sarmento Rodrigues para Moçambique, e Adriano Moreira para o Ministério do Ultramar é um sinal inequívoco de uma estratégia que parece pensada e adequada à situação, tanto quanto isso é possível num regime de compromissos permanentes, embora no âmbito exclusivo dos seus apoiantes. Estes três homens eram conhecedores, moderadamente autonomistas, com um pensamento de alguma coerência entre si. O regime parecia apostado em encontrar uma solução, dentro do quadro da sua política ultramarina e dos limites ditados pelo regime: autonomia controlada, prevalência do poder português (branco se quisermos), salvaguarda dos interesses das grandes empresas portuguesas (muita vezes contraditório com os interesses da comunidade branca em geral).

Embarque de tropas em Lisboa para Angola, 1961 (TT).
Mas houve dois factos que não tinham sido considerados na análise: a raiz dos movimentos autonomistas, que se filiavam na mudança do mundo dependente (incluindo a guerra revolucionária) e a falta de cultura internacional das elites brancas das colónias (que imaginavam a perenidade do seu estatuto).

Este equívoco durou dois anos. Em 1963 estava por terra. Depois disso nunca mais o regime conseguiu conceber ou admitir uma doutrina coerente e um plano adaptado à realidade, mesmo sob o seu ponto de vista. A política ultramarina do regime transformou-se num jogo de equívocos.

E como, apesar de tudo, as políticas são assumidas por pessoas e dependem, em grande parte, do seu próprio pensamento, do seu empenho e tantas vezes do seu carisma, a condução da guerra (das guerras) teve mais a ver com as personalidades do que com o regime. Mas nunca devemos exagerar a autonomia das personalidades em relação à natureza do regime. Nenhum dos comandantes dos teatros de operações que se seguiram se manifestou contrário ou sequer crítico do sistema político (e muito menos o fizeram os representantes da administração colonial).

De alguma forma é necessário esperarmos vários anos para termos três comandantes-chefes com três soluções para a guerra – Spínola na Guiné, Kaúlza de Arriaga em Moçambique e Costa Gomes em Angola. São três soluções muito diferentes. Mas, na conjugação das suas estratégias com a intervenção do poder de Lisboa (já assumido por Marcelo Caetano), nenhuma constituiu uma solução para o problema colonial. A solução de Spínola, ousada para os limites do regime, acabou recusada por Marcelo Caetano; a solução de Kaúlza de Arriaga demonstrou ser nula do ponto de vista político e desastrosa do ponto de vista militar; a solução de Costa Gomes, conseguindo inegáveis êxitos militares, deixou de fora a questão essencial da solução política.


2. Esta situação também tem a ver com as relações entre as Forças Armadas e o regime. Não é necessário alongar este tema para compreender o papel das Forças Armadas numa ditadura. Elas são sempre um suporte essencial do poder. Os conflitos no interior das Forças Armadas, ou destas com outros elementos do sistema, são conjunturais e traduzem-se em lutas de facções que não se empenham em levar longe demais os seus posicionamentos. Fazê-lo, configuraria o questionamento do regime.

No caso português, as Forças Armadas foram fiel instrumento da política do Estado Novo. A oposição à transformação interna do regime e à reformulação da sua política colonial foi sistematicamente participada pelas Forças Armadas, tanto em termos de definição de princípios e alternativas, como na sua execução. Não quer isto dizer que não tenha havido oposições individuais, desconforto e crítica interna, mas nunca chegou a configurar-se a unidade militar suficiente para inflectir a atitude de apoio ao regime.

Movimentos significativos de oposição ao regime só aconteceram com a tentativa de golpe militar de Botelho Moniz em 1961 e, claro, com o movimento dos capitães, a partir de 1973.


3. E se internamente não seria de esperar uma consistente alternativa gerada na sociedade ou no seio das forças armadas, talvez se pudesse esperar que a comunidade internacional tivesse sido mais firme com a ditadura portuguesa, em especial depois do início da guerra colonial ou, ao menos, depois da sua opção pela resistência a todo o custo.

Nas relações do regime português com o mundo, no período da guerra, podemos considerar que, de uma forma geral, a grande maioria dos países foram extremamente hostis ao regime português. E que, dentro deste mundo hostil, se situaram os países do bloco socialista, os países do Terceiro Mundo (afro-asiáticos) e os países nórdicos.

Mas houve também, como suporte da sobrevivência do regime, os países que podemos considerar indulgentes (e também colaborantes), como a Alemanha, a França, a Inglaterra, outros países europeus e os Estados Unidos.

Dean Rusk, secretário de estado americano em Lisboa (TT).

Apesar disso, os Estados Unidos ocupam um lugar à parte, nas suas relações com Portugal, pelos múltiplos compromissos resultantes da sua condição de super-potência. Pelo que devemos distinguir vários períodos que, tendo a ver com as sucessivas administrações de Kennedy, Johnson e Nixon, nem sempre corresponderam exactamente a esta lógica.

Mas, para além dos países hostis e indulgentes/colaborantes, devemos considerar os chamados países “irmãos”, como a Espanha e o Brasil (este depois de 1964), inegáveis suportes morais e materiais da sua política colonial, apesar das diferentes opções de cada um.

Finalmente, do que gostaríamos de falar era de dois países que a linguagem local designava por “primos” – a África do Sul e a Rodésia.


4. Vamos partir de um princípio. O regime português tinha uma doutrina oficial em relação às suas colónias – Portugal era um país pluricontinental e multirracial. A África do Sul, sem rebuço, assumia a sua política oficial do chamado “desenvolvimento separado”, na verdade, traduzido no “apartheid” e na supremacia da raça branca. A Rodésia, depois da proclamação unilateral da Independência em 11 de Novembro de 1965 (UDI) tornara-se um país pária em relação à comunidade internacional, não chegando a ser reconhecido por nenhum outro país. Nem Portugal se atreveu a tanto.

Ora estes três países conceberam e assinaram uma Aliança política e sobretudo militar, a que eufemisticamente chamaram “Exercício Alcora”.

Tudo o que vamos abordar é extremamente surpreendente, como o foi para nós, quando consultámos a documentação sobre esta íntima relação.

Um primeiro aviso – todos os contactos e documentos Alcora foram classificados de “Muito Secreto” ou “Top Secret”, e todos sabemos quais os procedimentos relativos a este nível de segurança. Em princípio só participavam pessoas devidamente seleccionadas, que ficavam impedidas de referir qualquer envolvimento. Chega a ser espantoso como a maior parte dos militares nunca se apercebeu da natureza dessas relações; e é intrigante tentar perceber como os comandos portugueses iam dar a conhecer ao mundo, ao país e às Forças Armadas, a sua opção pela aliança com os países vizinhos (foram os representantes portugueses que sempre recusaram baixar o nível de segurança destas relações).

A participação de meios e forças sul-africanas e rodesianas em operações em Angola e Moçambique eram tidas como informais, de ajuda eventual, em situações que também interessavam à defesa destes países.

Tudo começou com uma longa carta de Salazar a Verwoerd, primeiro-ministro sul-africano, em Agosto de 1963: “Nós estamos quase sós em África a defender a civilização do ocidente; a guerra está longe das vossas fronteiras se Portugal puder resistir; há interesse ocidental e sul-africano em que tal hipótese se não verifique; todas as formas de cooperação com Portugal são muito úteis à nossa resistência e à vossa defesa própria”.

Quais foram os antecedentes, destas relações? Em primeiro lugar, o apartheid. O apartheid foi estabelecido em 1948, como desenvolvimento separado de raças, pertencendo a União Sul-Africana à Commonwealth; é por isso que a Inglaterra assume a responsabilidade de alterar o regime de apartheid; o massacre de Sharpeville, em Março de 1960, representa um endurecimento do regime sul-africano, mas também o crescimento da condenação internacional; Macmillan critica duramente a posição sul-africana na cidade do Cabo em Outubro de 1960 (discurso dos ventos da mudança, ou ventos da História); o referendo sobre o corte com a monarquia e a declaração da república, em 5 de Outubro de 1960, consegue uma vitória de 52%; em consequência, concretiza-se a saída da Commonwealth e a declaração da República, em 31 de Maio de 1961; em 6 de Novembro de 1962, a ONU condena o regime sul-africano; no ano seguinte, em 7 de Agosto, a ONU decreta o embargo de armas à República da África do Sul.

A carta de Salazar surge num oportuno momento, quando se completam várias medidas de isolamento do regime sul-africano, exactamente em finais de Agosto de 1963. Em consequência destas relações, Portugal e a África do Sul, assinam, em Outubro de 1964, os primeiros acordos - Emprego de trabalhadores de Moçambique nas minas da África do Sul e acordo sobre o rio Cunene.

Entretanto, a 11 de Novembro de 1965, os colonos ingleses proclamam a independência unilateral da Rodésia. A declaração unilateral de independência da Rodésia teve um impacto decisivo na evolução da situação política e militar em Moçambique durante toda a guerra, mas, além de condicionar a situação militar, em particular na zona de Tete, a instauração de um regime de minoria branca na Rodésia ao lado do regime de apartheid da Africa do Sul, conduziu a uma aliança de interesses com Portugal. Estes acontecimentos desembocaram, em Dezembro de 1965, no embargo internacional ao comércio com a Rodésia, em que o bloqueio do porto da Beira não passou de uma comédia de enganos… Salazar manifestou à Rodésia e aos seus dirigentes o seu apoio.

Cidade do Luso, cerca de 1970, uma das bases "Alcora".

5. Nesta época, a política de defesa da África do Sul assentava nos seguintes princípios:
·        Criação de uma capacidade autónoma de defesa;
·        Programa nuclear;
·        Política de alianças regionais e com outros regimes ou Estados vizinhos.

A partir de Março de 1967 passaram a efectuar-se reuniões regulares entre delegações de Portugal e da África do Sul, com vista à construção de Cabora Bassa.

Em Setembro de 1967 o general Câmara Pina, chefe do Estado-Maior do Exército, mais uma vez em momento oportuno, apresenta às autoridades militares da África do Sul um memorando sobre as necessidades de Portugal: viaturas blindadas, viaturas de transporte, granadas, minas, postos de rádio e medicamentos.

Em Abril de 1968 foi dado um passo essencial para as relações militares de Angola com o ministério da Defesa da África do Sul – a criação dos Centros Conjuntos de Apoio Aéreo entre as forças portuguesas de Angola e as forças sul-africanas.

No início da guerra, os regimes brancos da África do Sul e da Rodésia prestaram um apoio limitado às forças portuguesas. Esse apoio foi aumentando à medida que estes dois regimes começaram a verificar a incapacidade de Portugal de controlar a situação. Estavam preocupados com o seu futuro no caso de uma derrota de Portugal e a partir de 1968 intensificaram os seus apoios, fornecendo material e até unidades de combate. Em 1968, os sul-africanos começaram por fornecer helicópteros Alouette III para serem operados por pilotos portugueses, mas esse apoio evoluiu rapidamente para o fornecimento de tripulações e finalmente foram destacadas companhias das Forças de Defesa da África do Sul (SADF). Estas unidades terrestres e aéreas operavam em conjunto com forças portuguesas, a partir das bases de Cuíto-Canavale e Gago Coutinho, onde foram criados Comandos Conjuntos de Apoio Aéreo (CCAA), em Abril de 1968.

O conjunto de acções de apoio da África do Sul, efectuadas entre 1968 e 1970 foi chamada Operação Bombaim e viria a ser apresentada em 1970, como justificação da necessidade de alterar os pressupostos das relações militares entre Portugal e a África do Sul.

Entretanto, em 10 de Julho de 1968 foi efectuada a adjudicação provisória pelo Governo português da barragem de Cahora Bassa, em Moçambique, ao consórcio ZAMCO, liderado pela África do Sul. Esta foi a última importante decisão sob a presidência de Salazar.

Como primeiro acto concreto de relevância do governo de Marcelo Caetano, devemos assinalar a assinatura de um novo acordo entre Portugal e a África do Sul para aproveitamento dos recursos hídricos da bacia do Cunene, em 21 de Janeiro de 1969. Este acordo foi assinado na sequência do anterior acordo de 1964 e, em termos técnicos, resultava da evolução nos estudos de desenvolvimento do projecto entretanto realizados. Em termos políticos este novo acordo representava o estreitamento das relações entre Portugal e a África do Sul, as quais passavam por estes grandes empreendimentos hidroeléctricos, do Cunene e de Cahora Bassa.

E logo em 23 de Março do mesmo ano visitaram Lisboa o ministro da Defesa da África do Sul, P. Botha, e o comandante das Forças Armadas, general Fraser. Os dois dirigentes sul-africanos chegaram a Lisboa para uma visita de três dias, vindos de França, onde tinham assistido ao lançamento à água de três submarinos destinados à RAS. Era a primeira visita de altos dirigentes da África do Sul a Portugal depois da tomada de posse de Marcelo Caetano e a retribuição da visita de Sá Viana Rebelo a Pretória. A África do Sul desejava conhecer as intenções do homem que substituíra Salazar.

Guerrilheiros do MPLA no Leste de Angola.

Durante o governo de Marcelo Caetano a evolução da situação militar em Angola e, principalmente, em Moçambique forçou o estreitamento das relações de Portugal com a África do Sul, especialmente no campo militar e dos serviços secretos. No entanto, a publicitação da existência de um eixo branco funcional Lisboa-Pretória-Salisbúria, como pretendia a África do Sul, esbarrou sempre no prurido português de se identificar publicamente com os dois regimes segregacionistas.

De forma mais clara efectuou-se, em 19 de Setembro de 1969, a assinatura do contrato de construção da barragem de Cahora-Bassa com o consórcio ZANCO, formado por empresas portuguesas, sul-africanas, alemãs, francesas e suíças, a que se juntaram interesses ingleses e americanos.

Mas foi em 1970 que a natureza das relações entre Portugal e a África do Sul iniciará uma profunda transformação, depois de uma reunião de alto nível em Pretória, entre delegações dos dois países, efectuada em 4 de Março, para um ponto de situação das relações militares entre ambos, focando em especial os territórios de Angola e de Moçambique.

A delegação da África do Sul era chefiada pelo comandante das Forças de Combate Conjuntas, tenente-general C. A. Fraser, que mantinha relações muito estreitas com as autoridades militares portuguesas, quer em Portugal, quer em Angola e Moçambique. Neste encontro, a África do Sul fez um longo ponto de situação das relações com as forças armadas portuguesas, em especial no sul e sueste de Angola, bem assim como apresentou uma perspectiva de colaboração futura.

Em primeiro lugar, foi feito pela África do Sul um balanço das relações mantidas com Angola depois de 1968, através da “Operação Bombaim”, especialmente traduzida no apoio aéreo à acção das forças portuguesas no terreno. Como afirmava o representante sul-africano, “A Força Aérea Sul-Africana tem estado a apoiar os Portugueses, no Este e Sudeste de Angola, em apoio directo e indirecto, desde Junho de 1968”.

De acordo com o quadro dos apoios concedidos, tal empenho cifrava-se em cerca de 7000 horas em apoio directo e 500 horas de apoio indirecto. A que se deveria acrescentar a manutenção de uma média de 18 oficiais e de 54 outras patentes em apoio à operação só da Força Aérea, para além de outros 150 homens que asseguravam o apoio de retaguarda.

Os resultados de tão profundo empenhamento não poderiam considerar-se brilhantes, pelo que se impunha uma revisão geral das condições de cooperação com as forças portuguesas, razão do encontro entre os representantes de ambos os países. A África do Sul propôs que se discutisse “Um Plano de Defesa para a África Austral”, apresentando desde logo o seu ponto de vista, em conferências divididas pelos seguintes temas:

1ª Parte – A situação militar na África Austral, com referência especial para a República da África do Sul;
2ª Parte – A situação no Este e no Sueste de Angola – Distritos do Moxico e Cuando-Cubango;
3ª Parte – Plano de Defesa para a África Austral;
4ª Parte – A República da África do Sul na condução global da campanha no Sueste de Angola.

Relativamente ao plano de defesa da África Austral, a questão a que deveria responder-se era a de saber como “fazer face a um inimigo comum”. E para isso era necessário um plano comum de utilização das tropas disponíveis de forma coordenada e planeada.

Este encontro, seguido da visita do primeiro-ministro da África do Sul, John Vorster, a Portugal, em 5 de Junho de 1970, levaram à assinatura de um acordo de base, em 14 de Outubro de 1970, orientador das conversações tripartidas entre Portugal, a República da África do Sul e a Rodésia. O acordo, designado “Exercício Alcora”, foi aprovado pelo ministro da Defesa de Portugal quase imediatamente, em 28 de Outubro de 1970; e veio a ser confirmado no ano seguinte pelos ministros da Defesa da África do Sul e da Rodésia, respectivamente em 12 de Maio e em 26 de Julho.

As conversações para o acordo tiveram lugar em Pretória, entre 7 e 9 de Outubro. As delegações militares de Portugal e da África do Sul eram chefiadas respectivamente pelo coronel Rocha Simões, director da 5ª Divisão do SGDN e pelo brigadeiro Greyvenstein, director do planeamento estratégico do Ministério da Defesa.

Aí ficou esclarecido que “o objectivo do Exercício Alcora consiste em investigar os processos e meios de conseguir um esforço coordenado tripartido entre Portugal, Rodésia e África do Sul, tendo em vista fazer face à ameaça mútua contra os seus territórios na África Austral”.

No documento assinado a 14 de Outubro são mencionados os assuntos a considerar para discussão futura, destacando-se, entre outros:

- Estudo da ameaça;
- Elementos de Estratégia;
- Táctica e normas de execução permanente em combate;
- Informações;
- Cartografia;
- Telecomunicações;
- Transportes;
- Logística;
- Aquisição de equipamento;
- Guerra psicológica.

O modus operandi proposto previa que, depois de conseguido o acordo para cada assunto, fosse nomeada uma comissão conjunta. E que acima das comissões para os diversos assuntos, se previsse desde logo uma comissão militar de alto nível, com “autoridade para estabelecer políticas, definir orientações e coordenar a acção das subcomissões”.

O acordo previa que, depois do documento ser aprovado pelas autoridades dos três países, se realizasse uma nova reunião, desde logo marcada para a África do Sul. Veio a ocorrer no período de 30 de Março a 1 de Abril de 1971, em Pretória.

Estas reuniões de alto nível prosseguiram, tendo-se realizado seis antes do 25 de Abril de 1974, e uma última em Junho deste ano, destinada a encerrar este ciclo de actos preparatórios para uma efectiva aliança militar destinada à defesa de um poder branco na África Austral.


Patrulha portuguesa em Tete, Moçambique (AHM).

Em paralelo com estas reuniões realizaram-se dezenas de outras, de variadíssimas áreas militares, visando estabelecer regras e procedimentos comuns, para o emprego de forças militares conjuntas. Passaram também a ser comuns as reuniões de responsáveis pelas informações e pelos serviços secretos dos três países, assim como as visitas de altos responsáveis políticos e militares.

Contudo, só em Setembro de 1973 os ministros da Defesa de Portugal, África do Sul e Rodésia aprovaram a criação de uma Organização Permanente de Planeamento Alcora (PAPO). Este novo órgão constituía o culminar de um trajecto percorrido desde a primeira reunião de alto nível em Março de 1970. Ele iria integrar as atribuições anteriormente dispersas pela comissão de coordenação e pelas diversas subcomissões Alcora. Ficou decidido também que a Organização iniciaria o seu funcionamento em Pretória, em Janeiro de 1974.

Faltava apenas o acordo financeiro, que viria a ser assinado em 8 de Março de 1974 entre o Governo Português (Ministério das Finanças) e o South Africa Reserve Bank para um empréstimo de 150 milhões de rands, destinado a financiar a aquisição de equipamento militar por Portugal.

Na sequência da aproximação política entre Portugal e a África do Sul, especialmente através das cimeiras desenvolvidas no âmbito do projecto “Alcora”, quando já estava decidido e em funcionamento um órgão permanente de planeamento “Alcora”, com sede em Pretória, os dois governos negociaram um grande empréstimo da África do Sul a Portugal no valor de 150 milhões de Rands. Este montante seria transferido para Portugal num prazo de 5 anos, em tranches de 5 milhões mensais, até um máximo de 50 milhões por ano. Destinava-se a suportar as despesas de Portugal com a aquisição de novos equipamentos e armamento. A prestação de Março foi imediatamente transferida.

Com o 25 de Abril, as transferências foram interrompidas, para não mais serem retomadas. Contudo, Portugal tinha já assumido compromissos vultosos por conta do empréstimo, na aquisição de equipamentos militares, incluindo os mísseis Crotale.

As negociações ao nível militar prolongaram-se até finais de 1975, sendo então transferido o problema para o âmbito dos Ministérios das Finanças e dos Negócios Estrangeiros.


6. Em 24 de Junho de 1974 teve início a sétima e última reunião do “Exercício Alcora”, mais uma vez em Pretória, em que os representantes dos três países se confrontam com os acontecimentos em Portugal e com o desmoronamento da organização tão longa e minuciosamente preparada para impedir o progresso do “Comunismo e da sua lança avançada, o Nacionalismo Africano”.

Nunca virá a saber-se como reagiriam vários sectores portugueses, tanto políticos como militares, ao conhecimento das decisões Alcora, se o 25 de Abril não as tivesse silenciado no momento exacto da sua divulgação. Com a máquina em movimento, é de supor que a reunião de alto nível prevista para Lisboa, no período de 24 a 28 de Junho, viesse a decidir a divulgação pública do acordo e do nível de cooperação já em execução e previsto, assim como das circunstâncias do seu funcionamento. Não se adivinha fácil a aceitação das resoluções de alto nível, de concretização de uma parceria melindrosa, e porventura inaceitável para alguns sectores do próprio regime. Mas o 25 de Abril não impediu a realização da reunião prevista para Lisboa (cautelosamente transferida para Pretória), que se revestiu de aspectos bastantes constrangedores.

Começou a reunião pela apresentação do relatório do DGSP, Director Geral de Planeamento Especiais, general R. Clifton. O responsável pela PAPO optou por ignorar completamente os acontecimentos de Portugal, porventura desejando que isso nunca tivesse acontecido ou esperando que nenhumas circunstâncias afectassem o desenvolvimento da sua organização. É o que justifica as suas primeiras palavras: “Desde que a ATLC se reuniu pela última vez em 9 de Novembro de 1973, foi estabelecida a organização PAPO sobre bases firmes e começa, parece-me, a desempenhar a sua função de alcançar os objectivos Alcora”. E prosseguindo: “Além da sua função de executar as tarefas especificamente determinadas pela ATLC, torna-se aparente que a PAPO é aceite como o veículo mais conveniente para coordenar e accionar quaisquer assuntos de carácter bilateral ou tripartido. Isto torna-se possível devido à composição representativa dos seus quadros e aos canais de comunicação que foram criados”.

O relatório desculpa depois alguns atrasos pela necessidade que houve de efectuar uma série de trabalhos administrativos, mas enumera algumas das tarefas cumpridas. Assim, entre Fevereiro e Abril, “efectuaram-se na PAPO onze reuniões das subcomissões Alcora para entrega das suas tarefas”, e embora este processo tenha atrasado a execução de trabalhos próprios da PAPO, a verdade é que isso “estabeleceu firmes alicerces para as suas futuras tarefas”. Continuando neste tom, o relator revela que “a primeira e prioritária tarefa de planeamento da PAPO foi a realização de um estudo designado por “Eliminação do Terrorismo”, que será distribuído. Uma falha contudo, aponta o general: “A PAPO tem dez oficiais a menos: sete de Portugal e três da Rodésia”, situação agravada pelo facto de “certos elementos do pessoal português serem cumulativamente adidos acreditados”, o que decerto não deixaria de se reflectir na capacidade da organização.

Mas se na aparência nada pareceu suficiente para alterar o tom do relatório, a verdade é que todos esperavam pela explicação portuguesa. A revolução de Lisboa, estava assente nos espíritos, desmoronara a construção Alcora.

Convidada então a delegação portuguesa a explicar “as possíveis consequências dos recentes acontecimentos, em Angola e Moçambique, e se havia vantagem na continuação do Alcora na sua forma actual”, não puderam os representantes portugueses furtar-se a abordar as questões que se levantavam e que os outros parceiros queriam escutar. Assim, em primeiro lugar, “não é conveniente nas actuais circunstâncias dar informações à imprensa sobre a existência do Alcora”, já que “as pressões internacionais podem interferir nas negociações em curso”. Quanto à influência da situação em Portugal no Alcora, vale a pena a transcrição da difícil resposta portuguesa: “O primeiro objectivo do Governo Português era obter um cessar-fogo nos territórios Alcora como pré-requisito para as conversações com os movimentos nacionalistas. Contudo, existem algumas diferenças de opinião com alguns partidos que querem imediatamente uma independência completa. O Governo Português não concorda com isto porque está convencido que os partidos que presentemente conduzem a luta não representam a opinião da maioria da população dos vários territórios. As pressões externas são fortes e é difícil nesta fase seguir uma linha de acção ou predizer um programa de acontecimentos. É também difícil prever o envolvimento militar futuro, mas se não se obtiver um cessar-fogo, Portugal assegura que continuará a combater o terrorismo. Em resumo, é difícil nesta fase planear a eliminação do terrorismo e compreendem-se as dificuldades da PAPO no estudo deste problema. Por causa das actuais preocupações internacionais e dos esforços da imprensa internacional para provar a existência de uma aliança Alcora, é inconveniente considerar nesta altura quaisquer acções conjuntas em Moçambique. O Governo Português assegurou já que evitará por todos os meios que os terroristas utilizem o território português contra os territórios vizinhos. Se a situação política evoluir continuando porém as Forças Armadas portuguesas responsáveis pela segurança militar de Angola e Moçambique, mantém-se a garantia anteriormente especificada. Desde que essa responsabilidade militar cesse então deixaremos de poder manter tal garantia”.

A mensagem era demasiado forte para que as ilusões continuassem. O Exercício Alcora tinha mesmo terminado.

Mas em Maio de 1975 houve ainda uma reunião em Lisboa de representantes militares da África do Sul com o estado-maior português, com o fim de dar solução à devolução dos materiais e equipamentos cedidos pela África do Sul a Portugal, no âmbito do extinto “Exercício Alcora”.

Era muito significativo o material emprestado pela África do Sul a Portugal. Os empréstimos tinham começado em 1969 e prosseguiram até 1973. Eram feitos sob uma designação codificada, como “operação Scapula”, “operação Oásis”, “operação Cadiz”, etc. Os materiais estavam a ser usados tanto em Portugal, como em Angola e Moçambique. As reuniões conjuntas iniciaram-se em 1974 e concluíram-se em Maio de 1975, quando uma delegação sul-africana se deslocou a Lisboa para acertar todos os pormenores da devolução. A correspondência entre as partes foi intensa, mas as operações de devolução prolongaram-se até 1976. Em muitos casos os materiais estavam a ser utilizados nas unidades portuguesas, fazendo parte do seu equipamento orgânico. Outras vezes foi necessário conferir o que regressava de Angola e Moçambique para se chegar ao acerto final. Em alguns casos os materiais ficaram nestes territórios, tornando inviável a devolução. A África do Sul aceitou que vários materiais fossem considerados obsoletos e não fossem incluídos na devolução.


7. Em suma, o “Exercício Alcora” foi uma aliança político-militar de Portugal com os regimes da África do Sul e da Rodésia, construída nos anos finais do regime português, com o fim de coordenar esforços e meios para dar combate mais eficaz aos movimentos autonomistas e de transformação interna dos regimes da África Austral.

As conversações bilaterais e tripartidas envolveram as maiores autoridades militares e políticas dos três países e traduziram-se pela instituição de um órgão de comando e direcção das operações militares em todos os territórios Alcora (Angola, África do Sul, Rodésia e Moçambique), na constituição de forças integradas e na definição de uma política de contra-subversão comum.

Está em aberto saber como iria o regime português enfrentar a divulgação pública da existência da aliança ou que medidas tinha preparadas para lhe dar seguimento prático, de acordo com as exigências dos seus parceiros. E quais seriam os projectos para os territórios que administrava e continuavam em guerra, não só Angola e Moçambique (territórios Alcora), mas também a Guiné.