sexta-feira, 24 de março de 2017

TEIXEIRA GOMES, UM DIPLOMATA EM LONDRES



Logo que terminei o curso de História na Faculdade de Letras de Lisboa, em 1980, fui convidado por alguns professores para participar em projetos de investigação que nessa altura tinham entre mãos. Passou-se isso com o Prof. João Medina, com quem participei na História Contemporânea de Portugal, que veio a ser publicada em 1985, e aconteceu também com o Prof. Vítor Vladimiro Ferreira, com quem fiz uma longa investigação no Arquivo Histórico Diplomático sobre a correspondência oficial da Legação de Portugal em Londres, entre 1900 e o início da Grande Guerra. Fiquei com a parte respeitante ao ministro (embaixador) Manuel Teixeira Gomes, correspondente ao período 1911-1914.

O trabalho foi publicado logo em 1982 na Análise Social, mas fica aqui a minha parte, com outro título.

Análise Social, ver aqui:




É nosso objectivo procurar, no meio da infindável lista de razões que precipitaram o penoso caminho da experiência republicana, um escolho que se associou a elas, feito de pequenos nadas escondidos na correspondência oficial de Teixeira Gomes, ao longo dos anos de 1911 a 1914.

As monarquias europeias, e em especial a inglesa, se suportavam mal a sua congénere portuguesa, não aceitaram de bom grado a solução republicana.

A oposição ao novo regime procurou organizar-se onde o terreno lhe era mais propício e o contra-ataque pudesse ser planeado, organizado e executado.

Ficaram então em Espanha os executantes e refugiaram-se em Inglaterra os marechais. A conspiração começou de imediato e manifestou-se em Inglaterra de três formas: acolhimento da família real e facilidades concedidas à movimentação dos seus apoiantes; campanhas sucessivas de imprensa sobre aspectos globais ou factos ocasionais ocorridos em Portugal, por forma a levar a opinião pública a manifestar-se contra o novo regime; atitudes do Governo Inglês, adiando o reconhecimento da República, por forma a manter as mãos livres, exigidas pelos apoios a uma viragem da situação.

Aspeto da inauguração da estátua da Rainha Vitória,
em Londres, em 1911, ano em que Teixeira Gomes iniciou
funções como Ministro de Portugal em Londres.

A análise da correspondência de Teixeira Gomes faz ressaltar as questões fulcrais que se colocaram à República no âmbito das suas relações externas. O plano que Teixeira Gomes acaba por delinear para a sua acção diplomática centra-se em torno de meia dúzia de problemas vitais, quase todos inter-relacionados.

Não parece, assim, de surpreender que a primeira grave questão que se coloca à Legação Portuguesa em Londres seja efectivamente a de conseguir opor-se aos planos da conspiração que fazia de Inglaterra uma praça-forte.

A acção conspirativa desenvolvia-se a vários níveis - junto das altas esferas influentes (família real, aristocracia, almirantado), onde os conspiradores procuravam apoios políticos; junto da imprensa, onde era notória a intenção de manter latente a questão portuguesa, influenciar a opinião pública contra a República e agitar certo tipo de problemas sensíveis ao espírito inglês e baseados em atitudes (com um fundo de verdade ou não) dos novos dirigentes e das novas instituições portuguesas; ainda junto de outros emigrados portugueses, no sentido da sua mobilização para a causa, da recolha de fundos e da preparação de meios militares de intervenção: equipamento de navios e preparação de incursões.

Teixeira Gomes procurou guiar-se por um plano razoável e possível, sabendo que o essencial da questão portuguesa não era resolúvel tomando somente em consideração os meandros das relações externas.

A leitura da sua correspondência oficial transmite a impressão de que Teixeira Gomes possuía uma central de informações, tão precisas e oportunas eram as advertências de que se fazia porta-voz, quer junto do Governo Português, quer junto do Foreign Office.

Floristas de Londres, em 1911.

Já depois de ter feito abortar várias tentativas de compra de navios de guerra por parte dos conspiradores, normalmente com recurso ao Foreign Office e levando na mão o nome do navio, o porto em que se encontrava e, por vezes, o conhecimento da casa encarregada da transacção, Teixeira Gomes, recebendo, em 4 de Setembro de 1911, informações de Lisboa que asseguravam uma iminente entrada em Portugal de conspiradores vindos da Galiza, noticia com surpreendente pormenor, em 13 do mesmo mês, que os comandantes da conspiração estão deveras descontentes com a pouca actividade de Paiva Couceiro.

Ainda passados dois dias, a 15 de Setembro, Teixeira Gomes, através de um seu agente, informa o dia da incursão - 25 de Setembro -, assim como os locais de concentração em território espanhol: Orense, Tui, Santiago e Salamanca.

Adiada esta, Teixeira Gomes pôde ainda alertar, em 4 de Outubro, talvez já não a tempo, embora o sistema Marconi tivesse sido estabelecido no princípio de Agosto, «como desejava a Inglaterra», que se dava como certa a entrada de Paiva Couceiro em Portugal com 4000 homens. Acrescentando, com vaga ironia, que se queda entre o humor e o pragmatismo do seu espírito de negociante, que as firmas comerciais da City tinham uma posição favorável à República.

Aspeto das tropas republicanas próximo de Vinhais, enviadas para combater
 as incursões monárquicas. Na frente reconhece-se António Granjo,
 que viria a ser primeiro-ministro, cargo em que foi assassinado
 no episódio da "Noite Sangrenta", em 1921.

Contudo, a 6 de Outubro, apesar da evidência dos factos, quando a Reuter dá a notícia da entrada do corpo de conspiradores na fronteira próximo de Bragança, Teixeira Gomes informa em telegrama: «Desmenti logo», o que constitui, ao que julgamos, uma das poucas precipitações do ministro português em Londres.

O rescaldo desta primeira incursão couceirista iria prolongar-se até Novembro, após o que a questão esmoreceu, mantendo-se contudo latente. Ressurge em Abril de 1912, em ofícios demonstrativos de novas preocupações do Governo Português. Confirmando este a possibilidade de nova incursão dos conspiradores, auxiliados por navios que se dirigiriam sobretudo ao Porto e tendo como comandante da esquadra Azevedo Coutinho, Teixeira Gomes reinicia as diligências junto do Foreign Office, no sentido de o Governo Inglês intervir junto da Espanha para que esta impeça as manobras conspirativas contra a República. O Governo Inglês recusa-se a intervir, argumentando que o caso deve ser tratado entre o Governo Português e o Governo Espanhol, através de notas «insistentes, justificadas e enérgicas». Aliás, essa questão era de tal forma considerada no âmbito dos dois governos peninsulares que o Governo Inglês recusara intervir quando o Governo Espanhol pedira os «bons ofícios do Governo Inglês (e esta informação era dada confidencialmente!) para impedir ou sustar a propaganda republicana de portugueses em Espanha». Ultrapassada, contudo, a segunda incursão, em Julho de 1912, o tempo parecia consolidar as instituições republicanas.

A ideia monárquica, desacreditada pelo longo fracasso da sua existência e pela memória viva do seu apodrecimento, não se mostrava capaz de vingar pela afirmativa, pela luta, pela recuperação dos seus valores expulsos. As incursões foram tentativas que tiveram um sabor a farsa, quedando-se entre dois receios: o de não mais voltar e o de ter de voltar. Mudou de estratégia por isso a reacção monárquica. Aniquilada na sua capacidade de disputar activamente o poder que perdera, a Monarquia estudou, com a astúcia de velha raposa, outras formas de regressar. E Teixeira Gomes, também astuto, descobre, algo desalentado, a táctica, inteligente e difícil de contrariar, do inimigo.

Páginas da Ilustração Portuguesa, com vários aspetos das incursões
 monárquicas de 1912, em Chaves.

Em 3 de Outubro de 1912 tem oportunidade de lançar o primeiro aviso: “[...] por informações colhidas em várias fontes cheguei à certeza de que as esperanças de restauração renasceram no espírito dos monárquicos, os quais contam com as dissenções dos grupos políticos de que se compõe o Parlamento português e o inevitável descontentamento que essas dissenções criarão no público, para renovar as tentativas de aliciamento tanto nos elementos militares como civis”.

Em 2 de Janeiro de 1913, como que num balanço do ano anterior, Teixeira Gomes renova as suas preocupações: as esperanças que os monárquicos alimentam baseiam-se «na falta de entendimento entre os vários partidos republicanos que aspiram ao poder, provocando assim a instabilidade dos ministérios e dificultando a sequência na execução de qualquer plano político e económico».

Depois deixa arrastar-se de novo pela luta contra a conspiração concreta, traduzida na compra e transporte de armamento e munições, na movimentação dos mais importantes agentes realistas e na forma como a imprensa inglesa trata a situação em Portugal e aproveita os mais pequenos incidentes para demonstrar a sua nunca sarada irritação contra o novo regime português.

É que o campo essencial da luta deixara de ser a Espanha ou a Inglaterra, os navios, o armamento ou a angariação de fundos. O campo passara-se para o interior, desenvolvendo-se em dois círculos privilegiados da reacção - as zonas rurais e a área do poder. Teixeira Gomes, consciente embora da situação, estava demasiado longe para se aperceber completamente do perigo que ela representava.

Ir-se-ia manter longamente mergulhado em campos de luta que mexiam mais com a sua sensibilidade — a questão colonial e o problema das campanhas de opinião desencadeadas em Inglaterra a favor dos presos políticos portugueses e contra a escravatura praticada nas colónias portuguesas.


Embora sendo indubitável que a preocupação dominante de Teixeira Gomes se prendeu, durante os primeiros tempos da sua permanência em Londres, com a consolidação das instituições republicanas e, portanto, com a luta contra os conspiradores monárquicos, é igualmente fora de dúvida que um assunto houve que constantemente surge como inquietante para o espírito do representante português — a política colonial.

A estratégia das potências europeias confrontava-se com as limitações dos recursos de cada uma. Cada vez mais o desenvolvimento do capitalismo necessitava de áreas de expansão, que só eram possíveis nas zonas periféricas da própria Europa ou nos territórios coloniais. A Alemanha, porque historicamente não tivera acesso à posse desses territórios, necessitava mais do que qualquer outra nação de uma solução urgente para a sua capacidade expansiva. O seu potencial não poderia deter-se perante meras formulações de carácter histórico, jurídico ou político. A tensão europeia fazia adivinhar perturbações a breve prazo.

Teixeira Gomes não tinha dúvidas acerca das dificuldades que se aproximavam. Na sua análise, a hipótese mais provável respeitava à eventual partilha dos territórios coloniais portugueses pelas potências europeias — e em especial pela Alemanha—, por forma a aplacar a gula expansionista de Berlim. E isto, Teixeira Gomes sabia-o, estava a negociar-se entre essas potências, especialmente entre a Inglaterra e a Alemanha. Por isso, o seu esforço de pesquisa se dirigia para a obtenção de informações que lhe possibilitassem compreender a estratégia que estava delineada.

A primeira questão que lhe surge é uma campanha organizada por um movimento antiesclavagista, do qual Teixeira Gomes, embora intuitivamente lhe dedicasse cuidados especiais, apenas compreenderia o significado quando pôde ligá-lo à existência de negociações secretas entre a Inglaterra e a Alemanha. De facto, em Maio de 1911, o representante português, a propósito da questão antiesclavagista, informa que tem «já um considerável dossier de documentos que a ela se referem, não perdendo ocasião alguma de interrogar quaisquer individualidades que se encontrem ligadas a esse movimento, habilitando-me para, em qualquer lance, encetar uma campanha de ataque contra os que falsamente deprimem os sentimentos humanitários dos Portugueses ou simplesmente rebater as suas acusações».

Mas, enquanto o problema do esclavagismo parecia ainda de menor importância, um outro dominava as atenções de Teixeira Gomes. Na verdade, apesar das repetidas afirmações de credenciados representantes ingleses aos seus insistentes pedidos de esclarecimento, ia-se visivelmente «acentuando a ideia de que não poderá haver harmonia perfeita entre as duas grandes potências enquanto a Inglaterra não entregar à Alemanha a melhor parte, se não a totalidade, das nossas possessões na África continental». Isto tornava-se publicamente claro quando um jornal alemão, o Morgen Post, publicava, em 4 de Dezembro de 1911, um artigo mostrando a conveniência de a Alemanha exigir parte das colónias portuguesas como compensação da sua abstenção nos negócios da Pérsia, que Teixeira Gomes comenta da seguinte forma: “Esta notícia espalhada pela Central News terá grande retumbância em Inglaterra, onde parte da opinião se vai declarando favorável a um acordo com a Alemanha, à custa das colónias portuguesas”.

Aspeto de instalações de secagem do cacau, em S. Tomé,
 na época em que Teixeira Gomes se opunha à campanha
dos "chocolateiros" britânicos na imprensa de Londres.

E, contudo, havia uma face dramática da questão colonial para um país como Portugal, impossibilitado de, por si só, se opor aos interesses das grandes potências. A resposta de Teixeira Gomes a uma questão do seu ministro dos Negócios Estrangeiros é extremamente elucidativa: “Tomo a liberdade de observar a V. Ex.a que não seria possível quando mesmo esta Legação dispusesse de capitais importantíssimos e pudesse influir directamente nos personagens políticos, quase todos membros da Câmara dos Pares, que dispõem dos jornais ingleses, não seria possível empreender uma campanha jornalística eficaz para preparar a opinião pública no que diz respeito à possibilidade de a Inglaterra obter ou não vantagens da Alemanha a troco da cedência das colónias portuguesas, sem previamente interessar nessa campanha um ou dois grandes partidos que disputam o poder. Ora isto é absolutamente inexequível pela razão óbvia de que nenhum desses partidos quereria tomar compromissos num assunto de cuja resolução pode depender a paz universal.

As perspectivas portuguesas iriam agravar-se quando Teixeira Gomes, em finais de 1912, se apercebe, através de alguns artigos publicados no jornal Spectator, que há intenção de ligar a propaganda antiesclavagista com o acordo anglo-alemão, por forma que ambas as questões «se reforcem mutuamente, a fim de acelerar a nossa ruína colonial». E Teixeira Gomes acrescenta: “Informações de origem diversa, mas segura, confirmam-me a realidade desses intuitos, não me restando actualmente dúvida de que se fazem preparativos para uma campanha formidável destinada a convencer o povo inglês de que nas colónias portuguesas existe a escravatura, incitando-o ao mesmo tempo a que se manifeste contra a aliança anglo-portuguesa, a pretexto de
que para a Inglaterra constitui uma vergonha manter uma aliança com países onde se exerce aquele abominável comércio.

A estratégia das grandes potências apresentava-se clara ao representante português. A hipótese de resolver o conflito latente à custa de Portugal tomava vulto e a conjuntura parecia confirmar uma credibilidade cada vez maior da via mais desfavorável a Portugal. Realmente, na opinião de Teixeira Gomes, «os horrores da guerra dos Balcãs [...] sugerem na opinião inglesa a necessidade de os evitar no que respeita a uma possível guerra com a Alemanha, e a ideia de que a partilha das colónias portuguesas aprasará ou evitará o conflito pode tomar vulto no público inglês, acarretando-nos toda a classe de dificuldades e dissabores». Não seria necessário muito tempo para que o plano geral parecesse ainda mais claro, já que tudo induzia Teixeira Gomes a pensar que a campanha antiesclavagista era auxiliada pela Alemanha. Efectivamente, «as informações particulares por mim colhidas em diversas fontes, tudo corrobora a minha desconfiança de que a Alemanha auxilia, se é que não dirige e subsidia essa campanha». E acrescenta, procurando enquadrar esta questão no quadro mais amplo da atitude alemã: A Alemanha é hoje a nação que maiores somas despende não só na espionagem militar, como nos trabalhos de sapa que facilitam a sua acção diplomática, não sendo portanto de estranhar que [...] não hesite em gastar quanto seja necessário para conseguir que nos vibrem um golpe decisivo, como seria a denúncia do nosso tratado de aliança com a Inglaterra. Este é indubitavelmente o seu objectivo.

Perante o iminente agravamento da situação, Teixeira Gomes apresenta, no alvorecer do ano de 1913, um plano de oposição às manobras alemãs, que, só por si, denuncia as bases de um projecto político e económico, jamais conseguido, da burguesia portuguesa.

Dele constam as seguintes medidas concretas:
1.º Organização da nossa administração colonial, devendo os funcionários a cujo cargo ela incumbe ter a necessária competência intelectual e moral;
2.º Assegurar as garantias devidas, conforme os tratados, aos negociantes estrangeiros que negoceiam nas nossas colónias;
3.º Extinção de quaisquer actos que possam induzir à suspeita de que nas nossas colónias se exerce o tráfico de escravatura;
4.º Activa defesa em Inglaterra contra a campanha e acusações dos «chocolateiros»;
5.º Conclusão do Tratado de Comércio Anglo-português;
6.º Organização de um plano económico e financeiro, tanto para a metrópole como para as colónias, que, aceite por todos os partidos, não corra o risco de gorar pelo facto de haver mudanças ministeriais;
7.º Organização e desenvolvimento do Exército Português, cujo plano possa realizar-se progressivamente, também ao longo das crises ministeriais.

Subsidiariamente, a constituição da Câmara de Comércio Anglo-Portuguesa, de modo a ter condições de vida, e a reorganização da Legação de Portugal em Londres, pondo-a em termos de poder atender com proveito às múltiplas questões que ela deve tratar.


A dependência de Portugal não poderia evidentemente solucionar-se através do projecto republicano. A situação, herdada da longa mediocridade política da dinastia de Bragança, prolongou-se para o pós-5 de Outubro e a República não conseguiu desembaraçar-se do essencial dessa dependência.

Os vaivéns de Teixeira Gomes entre a Legação de Portugal e o Foreign Office, excelentemente retratados na correspondência oficial do nosso representante, têm também o mérito de nos transmitir um quadro bem expressivo do tipo de relações que foi necessário manter (ou mesmo incrementar) com o Governo Inglês.

Reportando-nos apenas ao período em análise — Abril de 1911 a Julho de 1914 —, e sem qualquer pretensão de sermos exaustivos, pudemos retirar da correspondência oficial de Teixeira Gomes um significativo número de atitudes políticas do Governo Português demonstrativas da clara dependência que mantivemos relativamente à Inglaterra, à sombra de uma aliança centenária que bem raramente funcionou a favor de Portugal.

É assim possível surpreender cerca de duas dezenas de pedidos de interferência junto de outros governos feitos por Portugal ao Governo Inglês. Mais de metade respeita a interferências junto do Governo Espanhol, quase sempre a propósito dos problemas levantados pela presença de conspiradores monárquicos na fronteira da Galiza (embora mereçam destaque outros casos, como, por exemplo, a questão das ilhas Selvagens). Mas encontram-se neste rol igualmente pedidos de interferência junto dos Governos Alemão (fronteira de Angola), Holandês (problemas em Timor) e Chinês (problemas em Macau).

Foi possível também isolar vinte e três casos de pedidos de apoio, que se estendem desde o político ao diplomático e ao militar. Apoio diplomático em Madrid, no Japão, na Itália e na China; apoio político no problema da divisão das colónias portuguesas (assunto em que, paradoxalmente, a Inglaterra era parte interessada) e na visita, nunca conseguida, de navios de guerra ingleses a Lisboa. Apoio militar na formação de técnicos navais, no estudo por militares portugueses de certos esquemas da defesa de costa em Inglaterra, no conhecimento da forma de contabilidade dos arsenais ingleses e mesmo no fornecimento de um modelo de «mochila cirúrgica», que aliás custou perto de onze libras. Estas informações militares, quando eram fornecidas pelo Governo Inglês, traziam sempre um aviso de confidencialidade e uma inocente advertência de abertura de excepção relativamente ao pedido do Governo Português.

Mas é ainda mais extenso o número de pedidos de informações sobre procedimentos do Governo ou da Administração inglesa ou mesmo da própria sociedade - uso de hábitos talares em Inglaterra, organização da Cruz Vermelha e da Polícia de Londres, condições financeiras e técnicas da instalação do sistema radiotelegráfico, lista das mercadorias com isenção, funcionamento das minas de carvão e do cerimonial de Estado.

Bilhete postal da época da Grande Guerra, salientando
a aliança entre Portugal e a Inglaterra.

Detenhamo-nos contudo num caso exemplar — o do reconhecimento da República — e concluamos que a paciência política pode atingir certos limites, especialmente quando as condicionantes se apresentam exageradamente influentes.

Tratava-se pois de conseguir o reconhecimento da República pelas potências europeias, e em especial pela Inglaterra, monarquia que todas as outras reconheciam com primazia nos assuntos portugueses. Contudo, as «altas esferas de influência», como as costumava apelidar Teixeira Gomes, nunca se haviam mostrado osso fácil de roer pela novel diplomacia portuguesa. Enquanto a República patenteia, debaixo dum nervosismo crescente, a necessidade, a urgência, o dever do reconhecimento, a Inglaterra, vagarosa, exasperante e calculista, promete e adia, condiciona e joga.

Arrastam-se as negociações, justifica a Inglaterra a sua demora, põe condições e marca prazos diversos, numa espécie de jogo de polícias e ladrões, em que sempre ganham os polícias.

Em 10 de Maio de 1911, Langley, subsecretário de Estado do Foreign Office, promete o reconhecimento imediatamente após as eleições, para logo em 26 adiantar que tal será impossível antes da eleição do chefe de Estado, já que só este pode aceitar credenciais. Mas em 31 torna-se necessário que a Constituinte reconheça o actual governo! A paciência diplomática de T. Gomes continua intocável; a paciência política de Bernardino Machado é que está por um fio.

Mas o Foreign Office reserva mais surpresas. Em 24 de Junho alude «ocasionalmente» à questão da indemnização dos bens das igrejas inglesas e à necessidade de proceder ao reconhecimento da República por acordo com outras potências europeias. Finalmente, sem máscara, põe novos dados na mesa: a questão das igrejas é condicionante do reconhecimento.

Por isso, a 17 de Julho, Bernardino Machado define a posição portuguesa: «[...] reconhecimento quando quiserem.» Posição a que as prementes necessidades da política bem depressa vão retirar significado.

Em 15 de Agosto, o Governo Inglês apresenta o último «pedido» para modificação do regulamento da questão das igrejas, exactamente para ser alterada a segunda parte do artigo 3.º, referente ao registo das igrejas. Assente a modificação e aceite o texto do regulamento, o reconhecimento tomou-se iminente.

Veio a ocorrer em 11 de Setembro. Foi, apesar de tudo, uma difícil vitória da diplomacia portuguesa.


Finalizamos com um episódio que caracteriza, de forma exemplar, a natureza das relações estabelecidas entre Portugal e a Inglaterra. Os actos políticos demonstrativos do apoio inglês às instituições portuguesas, tradutores da efectiva vigência da velha Aliança Luso-Britânica, revestiam-se permanentemente de grande significado para o Governo Português, que, através deles, podia demonstrar a sua estabilidade e o seu crédito.

A visita de um vaso de guerra inglês ao porto de Lisboa foi meta diplomática de muitas horas de conversação entre Teixeira Gomes e vários funcionários do Foreign Office, incluindo o próprio ministro, Sir Edward Grey. Após a segunda incursão no Norte de Portugal, em Julho de 1912, a Espanha faz deslocar a Cascais, em atitude classificada de provocação evidente, uma pequena esquadra — «três fracos contratorpedeiros», como os classifica com disfarçado temor Augusto de Vasconcelos, ministro dos Negócios Estrangeiros. Por isso o Governo Português pede encarecidamente à Inglaterra que mande alguns vasos de guerra a Lisboa, em ofício de 15 de Julho, e a Inglaterra, quatro dias depois, nos aconselha a que não consideremos provocação a presença dos contratorpedeiros em Cascais, pois tal é a posição do Governo Inglês. Aceitámos, e só em 9 de Setembro, quando os fracos contratorpedeiros haviam jádeixado em sossego o mar de Cascais, renovamos o insistente pedido; mas apenas em 30 de Setembro do ano seguinte se atreve Teixeira Gomes a dizer que as conversações para a visita de navios de guerra ingleses a Lisboa estão bem encaminhadas. A 16 de Outubro de 1913, Teixeira Gomes pode informar que o cruzador Active visitará Lisboa, relatando em pormenor os meandros das «altas esferas influentes» que acederam finalmente a este acto de tão grande significado.

Porém, dez dias depois, as mesmas esferas, sempre atentas aos pretextos, sempre inclinadas a jogar o seu peso, aparentemente contrário à manifesta boa-vontade do Governo Inglês, faziam recuar ao ponto zero todo o esgotante processo de conversações — a visita do Active foi cancelada.

Por essa altura, Sir A. Hardinge, ministro inglês em Lisboa, fora já transferido para Madrid95. Um seu relatório, redigido em termos vigorosos contra a visita do Active, constituiu a base da mudança de atitude do Governo Inglês, que, note-se, interrompeu a viagem do navio quando este seguia já a caminho de Lisboa.

Segue-se a este incidente uma intensa troca de notas entre Teixeira Gomes e Afonso Costa, interinamente acumulando os Negócios Estrangeiros com a presidência do Ministério. A opinião de Teixeira Gomes é que só Sir Hardinge pode desfazer a má impressão que os seus relatórios causaram através de uma rectificação que devia ser negociada em Lisboa, já que o novo ministro inglês não se atreveria a desdizer, de ânimo leve e em curto prazo, as opiniões do seu antecessor. Afonso Costa aceitou a sugestão e tentou conseguir uma forma satisfatória para ambas as partes. Mas tão resistente se mostrou o ministro inglês, de tal modo tentou deixar tudo na mesma através de dúbias promessas que bem demonstraram a sua má-fé, que Afonso Costa, num desabafo que a política da paciência não deveria permitir, mas que a paciência da política nem sempre consegue suster, telegrafa a Teixeira Gomes: «Com este ministro da Inglaterra nada mais tratarei.»

Mas de tal modo o incidente ficou latejando entre os dois países, que o primeiro navio de guerra inglês só viria a Lisboa já após o início da primeira guerra mundial.




domingo, 5 de março de 2017

HÁ CEM ANOS, NO CENTRO DA EUROPA - AINDA TEMOS MEMÓRIA DE VERDUN?




No dia 2 de Junho de 2010 participei no III Curso de História Militar da Faculdade de Letras de Lisboa, fazendo uma conferência sobre o tema que me foi proposto pelos Professores que orientaram o curso, os meus amigos António Ventura e José Varandas: “O grande impasse: Verdun, 1916”.
Nunca tive oportunidade de publicar o texto da conferência que apresentei. Aqui fica, com outro título.



Foi-me pedido para vos falar de Verdun, como o grande impasse. Reflectindo sobre o tema, fui levado a concluir que poderemos de facto falar de Verdun como o grande impasse, mas também poderíamos falar do Somme, como o grande impasse, ou do Marne, ou da Flandres, ou da Champagne. A Grande Guerra configurou-se como um grande impasse político, estratégico e táctico. A frente ocidental estabilizou em torno de uma longa linha de trincheiras, da fronteira suíça ao Mar do Norte. E ninguém soube encontrar forma de sair do impasse. Nem a política, nem a estratégia, nem a indústria. Só quatro anos depois, por cima de milhões de baixas, se começaram a vislumbrar sinais de que o impasse poderia ser quebrado. A indústria respondeu com o carro de combate e a aviação de combate e os estrategas com as formas de utilização das novas armas. A política só cedeu quando nada mais havia a fazer!

No início da guerra, em 1914, os contendores eram:
Por um lado, a Alemanha, o Império Austro-Húngaro e a Turquia;
Por outro, a França, o Reino Unido, a Rússia, a Bélgica, a Sérvia.

A pouco e pouco, outras potências e países acabaram por entrar na guerra – por exemplo, a Bulgária, ao lado das potências centrais; e a Itália, a Grécia, Portugal, a Roménia e finalmente, em 1917, os Estados Unidos, ao lado dos Aliados.

Mapa que integra o Plano Schlieffen alemão e o Plano XVII francês.

A Alemanha sabia que num conflito futuro teria que preparar-se para combater em duas frentes – a Oeste, enfrentando a aliança entre a França e a Inglaterra (Entente Cordiale) e a Leste, resistindo à Rússia, ligada por vários tratados às potências do Ocidente. O plano Schlieffen, concebido pelo general do mesmo nome, chefe do Estado-Maior-General alemão e concluído em 1906, traduz o dilema alemão perante um conflito europeu de grandes dimensões. Assim, o plano entendia que na primeira fase da guerra, em seis semanas, as forças alemãs, constituídas por quase 90% dos efectivos, deviam atacar a Ocidente terminando com a tomada de Paris, através da Bélgica (e Holanda), e assegurando com os restantes 10% a contenção a Leste, face à lentidão de mobilização do exército russo; conseguida a vitória a Ocidente, as forças seriam transferidas para Oriente para se confrontarem com a Rússia.

Esquema que procura representar a ideia alemã de "porta giratória",
que permitiria às tropas alemãs, depois da tomada de Paris,
 apanharem as tropas francesas pela retaguarda, depois de estas
terem avançado nas regiões da Alsácia e da Lorena.

O plano francês (Plano XVII), baseado na doutrina da ofensiva a todo o custo, orientou-se predominantemente para a conquista dos territórios perdidos pela França em conflitos anteriores, como a Alsácia e a Lorena.

O mês de Agosto de 1914 é crucial para a compreensão do que veio a suceder nos anos seguintes.

Os enormes efectivos do Exército alemão que invadem a Bélgica, a caminho de Paris, procuram seguir o Plano Schlieffen. A França percebe tardiamente a estratégia alemã. O seu Exército, comandado por Joffre, guiou-se pelo Plano XVII, mantendo a ofensiva por dois eixos principais, a Norte e Sul de Metz, mas desguarnecendo perigosamente a região Nordeste. Tropas inglesas voltam ao Continente europeu, com uma força expedicionária comandada por John French.

As primeiras e sucessivas batalhas trazem para o teatro de operações as grandes linhas de força do empenhamento das unidades militares em grande parte dos longos 51 meses que a guerra irá durar - fogos maciços, efectivos volumosos, desastrosas tentativas de avanço em terreno descoberto, milhares de mortos, organização do terreno, estabilização das frentes, trincheiras.

Todas as batalhas foram devastadoras, com milhares de baixas de ambos os lados, em que o intenso fogo das metralhadoras e da artilharia se tornou decisivo no resultado dos combates.

Mapa representando a linha de trincheiras desde a Suiça ao Mar do Norte,
depois da estabilização da frente ocidental.
Mas se o sistema de trincheiras se tornou rapidamente efectivo no flanco Sudeste, o flanco Nordeste veio a ser preenchido quase em paralelo por ambos os lados, em operações contínuas, a caminho do canal da Mancha, a chamada “corrida ao mar”, até que se desenhou uma linha de organizações defensivas, que veio a estender-se por cerca de 765 km, entre a fronteira suíça e o Canal da Mancha. Será em torno desta “fronteira de guerra” que as operações futuras se virão a desenrolar na frente Ocidental.

A primeira grande surpresa ocorrida no campo de batalha foi a eficácia das novas armas, em especial da metralhadora e da artilharia. A superioridade do fogo sobre os outros elementos do combate foi decisiva para a forma de combater nos campos da Grande Guerra.

A metralhadora, como arma baseada no conceito de tiro múltiplo e contínuo, surgiu muito antes da Grande Guerra. Mas os responsáveis militares europeus não se aperceberam, antes de as operações começarem, da importância que viria a ter no combate. A sua influência no desenrolar da guerra foi enorme, levando à construção de abrigos e rapidamente das trincheiras, única forma de proteger os combatentes do seu fogo.

Aspecto de uma trincheira. 
Este sistema de trincheiras, se por um lado paralisou a guerra, obrigando as operações a girar em torno da imensa linha de contacto, sem alternativa aos ataques frontais excessivamente mortíferos, por outro lado obrigou a repensar formas de ultrapassar o impasse. Foi assim que se desenvolveram novas tácticas e novos equipamentos, começando pelo papel da artilharia, passando pelo uso de gases e acabando na importância do carro de combate e da aviação de combate.

Nas trincheiras, a rotina do dia-a-dia era muito penosa e as condições de vida extremamente precárias. Tudo se organizava em função do inimigo, da vigilância, da segurança, da capacidade de sobrevivência. As condições sanitárias eram de extrema precariedade, as doenças bastante comuns, o sofrimento constante.

Deslocamento de uma boca de fogo de artilharia.
A artilharia teve um papel fundamental nos campos de batalha da Grande Guerra. As suas acções traduziam-se em longas preparações e contra-preparações, barragens e flagelações, em que eram consumidos milhões de granadas de todos os calibres, soterrando homens e materiais, abrindo enormes crateras, e transformando o campo de batalha numa paisagem lunar. 

Houve inovações não só nas armas propriamente ditas, nas munições e nas cargas propulsoras, mas também na condução do tiro, no sentido da sua eficácia progressiva. Outras inovações vieram também contribuir para o emprego da artilharia, como o telefone, o balão cativo, a TSF e o avião, permitindo a observação e aperfeiçoamento do tiro.

No fim de 1914 toda a movimentação no campo de batalha terminou e a guerra imobilizou-se nas trincheiras.

Em 1915 várias tentativas foram feitas para romper as linhas. Contudo, todas elas falharam, tendo como único resultado terríveis perdas de vidas. O ano caracterizou-se, na frente ocidental, por uma postura predominantemente ofensiva por parte dos Aliados e por uma prudente contenção defensiva do lado alemão.

Joffre convenceu-se de que conseguiria penetrar o dispositivo alemão se fosse capaz de obter nítida superioridade de meios em troços estreitos de frente, economizando forças nos locais menos propícios a acções ofensivas. Escolheu as zonas que enquadravam o saliente da frente alemã – Arras, Somme e Champagne.

Por seu lado, a posição de Falkenhayn, como chefe do estado-maior alemão, estava longe de constituir um factor de unidade dentro do exército alemão. A questão fulcral no plano estratégico era decidir sobre qual das duas frentes – ocidental ou oriental – deveria merecer a prioridade dos recursos.

Falkenhayn não assumiu claramente a opção do esforço principal a oriente porque tal decisão seria uma confissão pública do fracasso da ofensiva a ocidente. Esta postura feriu a sensibilidade dos dois principais responsáveis da frente oriental – Hindenburg e Ludendorff.

Em Março de 1915 os britânicos lançaram uma ofensiva no sector de Neuve-Chapelle. Em apenas 20 minutos, obtiveram uma penetração de 1500 metros. Os alemães contra-atacaram com as suas reservas (entre as quais a 6.ª Divisão Bávara de Reserva, onde Adolf Hitler prestava serviço como estafeta de um batalhão), anulando grande parte do êxito inicial. Em três dias de combates, a troco de umas escassas centenas de metros de terreno, a FEB sofreu 11.652 baixas contra cerca de 8.600 do lado alemão.

O que estava em causa era o diminuto poder de choque da infantaria face ao grande volume de fogos com que era alvejada. A indústria só poderia resolver o impasse desde que lograsse produzir uma arma que conjugasse o poder de fogo e a mobilidade com uma protecção eficaz. Essa arma – o carro de combate (ou tanque) – estava em preparação, mas só faria o seu aparecimento nos campos de batalha do Somme, em 1916.

Do lado alemão, o apelo à indústria seguiu, inicialmente, caminhos diferentes. Em vez de se preocuparem com a forma de romper as defesas fortificadas através do aumento do poder de choque, procuraram encontrar um processo de destruição maciça para o qual as trincheiras não fossem protecção suficiente. Esse processo encontraram-no os alemães sob a forma de um agente químico letal (o cloro), apesar da sua utilização estar interdita pela Conferência de Haia, de 1899. Todavia, o atraso no desenvolvimento de carros de combate viria a ter funestas consequências para o exército germânico.

Mapa de Ypres em 1915, sinalizando os
ataques com gás.
Em Abril de 1915, os alemães tinham reunido, a poucos quilómetros de Ypres, 6.000 munições carregadas com gás de cloro. Às 17 horas de 22 de Abril, após um intenso bombardeamento alemão, uma nuvem cinzento-esverdeada, soprada por uma brisa Este-Oeste, começou a mover-se para as trincheiras francesas. Atingidos pelo gás, milhares de soldados norte-africanos da 47ª Divisão (argelina) e franceses da 87ª, de mãos nas gargantas, tossindo, cambaleando e com as faces azuladas, abandonaram as posições e afastaram-se, desesperadamente, para a retaguarda, deixando desguarnecidos oito quilómetros de frente. O ataque da infantaria alemã que se seguiu não soube explorar convenientemente a ruptura da frente, permitindo a reorganização do sector com o recurso de reservas.

A rápida adopção das máscaras antigás fez com que a utilização do gás venenoso jamais tivesse obtido os êxitos tácticos que se haviam imaginado. O seu emprego estava, de resto, dependente de condições meteorológicas favoráveis, nomeadamente da existência de vento com direcção e intensidade adequadas ao desenvolvimento da nuvem de gás.

Em Maio, os Aliados lançaram nova ofensiva no Artois. O 1.º Exército britânico, partindo do sector de Neuve-Chapelle, na direcção das cristas de Aubers, depressa viu o seu avanço bloqueado.

Só em 25 de Setembro é que os Aliados desencadearam outra grande ofensiva, simultaneamente no Artois e na Champagne. Não foram, contudo, suficientemente hábeis para esconder os preparativos do inimigo, o qual se organizou, com particular cuidado, numa faixa de 5 km de profundidade.

A nova doutrina alemã, fruto da experiência de quase um ano de trincheiras, previa o emprego do fogo defensivo numa sequência lógica e mortífera:

·        Fogos de artilharia contra as zonas de reunião e as bases de ataque das unidades inimigas;
·        Barragens de artilharia sobre a terra-de-ninguém, logo que as unidades atacantes iniciavam o avanço para os objectivos;
·        Fogos de metralhadora, a curtas distâncias, sobre os elementos que tivessem sobrevivido às duas fases anteriores.

A ofensiva aliada foi precedida de uma intensa preparação de artilharia que se prolongou por quatro dias. Os efectivos empregues foram claramente superiores aos de Maio e permitiram romper a primeira linha alemã em vários pontos. Todavia, os resultados finais não foram muito diferentes dos da Primavera.

A ofensiva prosseguiu, no Artois e na Champagne, até ao final de Outubro. Ao fim de 5 semanas de combates, os Aliados tinham sofrido quase 200.000 baixas (mortos, feridos e prisioneiros) e estavam com as reservas de munições de artilharia a um nível que não permitia o apoio de operações ofensivas.

As carnificinas destas batalhas não pareciam, porém, ser suficientes para levar os chefes militares a repensar a forma de executar as operações, nem os políticos a considerarem qualquer tipo de negociação.

Mapa da frente ocidental e localização de Verdun, com as operações principais em 1915 e 1916.

Os dois lados estavam convencidos que 1916 iria ser o ano da vitória! Os alemães concentravam a sua certeza em Verdun. Os aliados tentavam chegar à vitória no Somme.

Foi por essa altura que os governos de Paris e Londres reconheceram a necessidade de reforçar as medidas de coordenação, política e militar, entre todas as potências aliadas. Assim, em 4 de Dezembro, Briand reuniu-se em Calais com Lloyd George, ministro britânico das Munições, estando presentes Kitchener, Joffre e Gallieni. Dois dias mais tarde, no GQG, em Chantilly, realizou-se o primeiro Conselho de Guerra Interaliado, que, sob a presidência de Joffre, contou com a presença de representantes militares da Grã-Bretanha, Rússia, Itália, Bélgica e Sérvia. Nessa reunião, concertaram-se as grandes linhas da actividade operacional em 1916, ficando esboçada uma estratégia de incremento das acções ofensivas nas três frentes principais – ocidental, oriental e italiana – e de clara contenção nos teatros de operações menores – Salónica, Egipto e Mesopotâmia. Ficou assente, também, que as grandes ofensivas deveriam ocorrer em simultâneo, de modo a dificultar a utilização das reservas do inimigo. Tendo em atenção as dificuldades do exército russo, logo se entendeu que as ofensivas dificilmente poderiam ocorrer antes de Junho de 1916.

Conhecido cartaz britânico de apelo à mobilização.
A atracção por acções de grande envergadura era apoiada na capacidade que os Aliados entretanto haviam desenvolvido no campo industrial, possibilitando uma produção intensa de armas e munições. Mas a França estava nos limites do recrutamento. A maior expansão de efectivos relativamente ao início da guerra verificou-se no exército britânico, graças à resposta entusiástica dos voluntários ao apelo de Kitchener. Na Primavera de 1916, estavam de pé 70 divisões – dez vezes mais do que em Agosto de 1914. Este crescimento – que se reflectiu, também, nos efectivos da FEB – permitiu, logo em Janeiro de 1916, ocupar uma extensão maior da frente ocidental, ficando os britânicos com o sector até aí atribuído ao 2.º Exército francês.

Do lado alemão, Falkenhayn convencera-se de que havia dominado definitivamente o exército russo. Estava bem informado acerca dos problemas internos do regime czarista e acreditava que a Rússia se abeirava de uma revolução. Consequentemente, chegara a altura de exercer, de novo, o esforço principal a ocidente.

O planeamento do seu quartel-general orientou-se para uma ofensiva na região de Verdun – a operação Julgamento.

Segundo Falkenhayn, a acção terrestre deveria ser complementada com uma guerra submarina sem restrições, de forma a ferir a superioridade marítima e industrial dos Aliados.

O receio de provocar uma ruptura diplomática com os Estados Unidos levou a marinha alemã a restringir os ataques a navios claramente identificados como pertencentes a países em guerra. Era este tipo de restrições que Falkenhayn julgava necessário remover.

No que toca à decisão de transferir para ocidente o esforço principal, Falkenhayn tinha o apoio do Kaiser e do príncipe herdeiro. A oposição a tal decisão vinha, naturalmente, da dupla Hindenburg-Ludendorff, sempre apostados numa vitória decisiva a Leste.

Forte de Verdun e linha da frente.
A escolha do local exacto desse esforço – a região de Verdun – pode explicar-se pelo valor simbólico que os alemães atribuíam à conquista da fortaleza e pelo efeito desmoralizante que a sua tomada provocaria no exército francês.

Constituindo a região de Verdun um saliente pronunciado na longa frente de combate, a ofensiva oferecia aí, do ponto de vista táctico, o aliciante de se poder processar em duas direcções.

“A Batalha de Verdun pode considerar-se a maior e mais longa da História. Pelo menos na quantidade de homens participantes numa tão estreita faixa de terreno. A batalha desenrolou-se entre 21 de Fevereiro e 19 de Dezembro de 1916 e causou mais de 700.000 baixas (mortos, feridos e desaparecidos). O essencial da Batalha não ocupou mais de uma dezena de quilómetros quadrados. De um ponto de vista estratégico pode dizer-se que não havia qualquer justificação para esta carnificina. A batalha como que se tornou uma questão de prestígio para duas nações e para vários generais envolvidos, enquadrada pelo imenso impasse em que a guerra se tinha transformado”.

Durante Janeiro e Fevereiro de 1916, o 5.º Exército alemão foi reforçado com 10 divisões e diversa artilharia. Com 2,5 milhões de granadas disponíveis, tratava-se da maior concentração de poder de fogo jamais vista. A ideia de Falkenhayn era conduzir uma impiedosa acção de desgaste, obrigando o exército francês a consumir-se numa estreita frente de 13 km.

A experiência ensinara os franceses a não ter ilusões sobre a capacidade das fortalezas se defenderem por si próprias. Verdun teria de ser defendida bem à frente das fortificações.

Os preparativos alemães não passaram despercebidos ao exército francês. Iniciados a 21 de Fevereiro de 1916, os bombardeamentos causaram enormes destruições. Em 22 de Fevereiro a infantaria alemã lançou o ataque, embora apenas na margem direita do Mosa.

A 24 de Fevereiro, toda a alinha avançada francesa havia sido ultrapassada e a queda de Verdun parecia iminente.

Forte de Verdun.

Joffre entregou, então, a defesa de Verdun ao general Pétain, conhecido pela sua firmeza.

Com a sua chegada, a 26, onde até então houvera 5 divisões passaram a estar 4 corpos de exército (VII – I – XX – II). Pétain não perdeu tempo. Apesar da contínua pressão dos alemães, a 27 já não se verificaram avanços dignos de registo.

Entre 26 de Fevereiro e 4 de Março, o XX CE travou um encarniçado combate pela posse do forte de Douamont, cujas ruínas acabaram por ficar na posse dos alemães. Nesse combate, foi ferido e aprisionado o capitão Charles de Gaulle, futuro presidente da França.

Tendo falhado o ataque frontal às posições da margem direita do Mosa, os alemães decidiram alargar a ofensiva aos terrenos da margem esquerda, mais abertos e menos acidentados.

Mapa da batalha de Verdun.

A 6 de Março, o primeiro ataque a Oeste do Mosa levou ao colapso da 67.ª Divisão. Todavia, os contra-ataques franceses repuseram a situação. A Este do rio, os ataques simultâneos também não produziram ganhos dignos de registo.

Em 9 de Abril, o exército alemão voltou a atacar, numa frente maior, ganhando algum terreno a Oeste do Mosa. No entanto, Falkenhayn já não acreditava poder vencer os franceses sem correr o risco de sofrer pesadas baixas. O desgaste que planeara infligir ao inimigo era algo com que também tinha de contar para as suas tropas.

No início de Maio, o número de mortos e feridos alemães, desde o início da ofensiva, havia atingido a cifra de 100.000. Com o decorrer do tempo, a erosão tornou-se, mesmo, mais sensível do que nos franceses.

Estes, através da rotação das divisões em primeiro escalão, garantiam às tropas algum repouso em posições recuadas. Os alemães, pelo contrário, mantinham as mesmas divisões ao contacto e recompletavam as baixas com rendições individuais.

Aspeto do Forte Vaux, depois da guerra.
Na primeira semana de Junho, um novo impulso ofensivo levou os alemães contra o forte de Vaux. Tendo conseguido cercar a fortificação, acabaram por constranger a guarnição à rendição, devido à falta de água.

A firmeza de Pétain, entretanto, era conseguida à custa de pesadas baixas. Começou a dizer-se que o general menosprezava as perdas das suas tropas – opinião partilhada pelo próprio Joffre –, o que aconselhava a sua substituição.

Assim, na sequência da ofensiva de Junho, Pétain foi nomeado comandante do Grupo de Exércitos do Centro – uma promoção – sendo substituído pelo general Robert Nivelle, um perito em artilharia.

Mapa-desenho da região de Verdun.

A 23 de Junho, o exército alemão lançou novo ataque na margem direita do Mosa, procurando, desta vez, conquistar os fortes de Souville e Tavannes.

Fê-lo preceder de uma preparação de artilharia com gás “Cruz Verde”, uma forma aperfeiçoada de gás de cloro. Dessa vez, porém, o objectivo principal do bombardeamento foi a linha de posições da artilharia francesa. A neutralização temporária dessas guarnições permitiu à infantaria alemã progredir em condições de superioridade táctica. Este avanço colocou as tropas alemãs na posição mais próxima de Verdun em toda a guerra. A situação era extremamente crítica para as tropas francesas, prestes a serem expulsas da margem direita do Mosa.

A 30 de Junho, todavia, na sequência de contra-ataques iniciados a 24, conseguiram suster o avanço alemão, marcando, assim, o final da primeira fase da batalha de Verdun.

Mapa do contra-ataque francês.

Quatro meses de combates haviam provocado na região um grau de destruição nunca antes imaginado. As perdas humanas, de ambos os lados, haviam subido aos 200.000 (mortos e feridos). A operação Julgamento, na sua versão eminentemente ofensiva, saldara-se por um dispendioso fracasso que deixava abaladíssimo o prestígio de Falkenhayn. A partir de Julho de 1916, a postura alemã denotou um claro declínio ofensivo.

Entretanto, outro factor veio interferir na conduta das operações: o início, a 1 de Julho, da ofensiva aliada no Somme.

A necessidade que as forças alemãs tiveram de acorrer com grande volume de meios a outro ponto da frente permitiu aos franceses, entre 24 de Outubro e 3 de Novembro de 1916, a reconquista de uma parcela de terreno, em forma de cunha, na qual se incluíam os fortes de Vaux e Douamont.

Representação da Batalha de Verdun, entre Fevereiro e Dezembro de 1916.

Finalmente, a 11 de Dezembro, uma intensa preparação de artilharia deu início a nova ofensiva francesa que, em 18, repôs, sensivelmente, as linhas correspondentes a 25 de Fevereiro.

A derrota do exército alemão nos combates dessa semana ficou bem expressa nos cerca de 12.000 prisioneiros e 284 bocas-de-fogo de artilharia caídos nas mãos das tropas francesas.

A Batalha de Verdun chegava ao fim. A linha de trincheiras que separava os dois contendores era reposta na sua posição inicial. Mas o impasse permanecia.

Via Sagrada, Verdun.
Aspecto do tráfego de camiões na Via Sagrada, Verdun.


Mas não posso terminar esta batalha sem falar da “Via Sagrada”, um dos símbolos de Verdun, que perdurou para sempre na memória francesa. A via sagrada era o único acesso a Verdun, que partia de Bar-le-Duc. Nos meses de maior trânsito, os números eram os seguintes:

Via
Largura
Veículos
Pessoas
Cargas
Camiões
75 Km
7 m
Média
3.900
Total
90.000 Semana
50.000t
Semana
6.000
Dia


Façamos também um balanço das baixas em Verdun. Como já dissemos esta foi a maior batalha da História, no que respeita ao número de baixas em relação com a faixa de terreno em que aconteceram. Os números continuam ainda hoje a não ser muito precisos, mas um dos autores estima-os desta maneira:

FRANÇA
337.231
162.308 MORTOS OU DESAPARECIDOS
ALEMANHA
337.000
100.000 MORTOS OU DESAPARECIDOS
TOTAL
714.231
262.308


Aspecto de um dos fortes de Verdun, depois da guerra.
Temos visto como nestas acções militares foi importante o fogo (em especial de artilharia e metralhadoras), como não houve praticamente movimento das tropas e como nenhuma arma era suficiente para garantir protecção, pelo menos temporária, a qualquer ataque. Essas razões justificam o impasse em que a Guerra se transformou, em torno da linha de trincheiras. Ora na ciência militar existem algumas condições para que um combate se possa decidir. Esses factores são chamados os elementos essenciais do combate: fogo, choque, movimento, protecção e comando/ligação.

Apesar de tudo, foi na batalha do Somme que o impasse começou a resolver-se. Em Setembro de 1916 apareceram os primeiros tanques, ou carros de combate, que aliavam o poder de choque (peso) ao fogo (canhão/metralhadora), ao movimento (motor de explosão) e à protecção (blindagem). Deslocando-se sobre lagartas – aproveitando a tecnologia dos tractores caterpillar –, o carro de combate podia acompanhar a infantaria em todo o terreno e a sua blindagem não era perfurável pelas munições de armas ligeiras (espingardas e metralhadoras) nem pelos estilhaços das granadas de artilharia.

Viatura blindada Renault T-17, uma das novas armas
que possibilitou a solução do impasse na frente ocidental.

Só o impacto directo de um projéctil de arma pesada podia causar a sua destruição. A utilização desta nova arma constituiu uma grande vitória técnica sobre a indústria militar alemã, que, neste particular, se atrasou surpreendentemente.

O primeiro ataque em que participaram os carros de combate Mark I (era esta a designação dos primeiros modelos) desenrolou-se ao longo da estrada de Albert para Bapaume.

O avanço britânico só foi detido, 3 km à frente, devido a problemas mecânicos e ao aparecimento de valas intransponíveis. Nesse primeiro ataque, só um dos 36 Mark I utilizados foi destruído.

O sucesso só não foi mais espectacular porque o desgaste dessa primeira experiência deixou a maioria dos veículos com avarias complexas. Os ganhos desse dia foram, por isso, perdidos na sequência dos contra-ataques alemães. Foi, de resto, um cenário permanente de avanços e recuos que caracterizou a batalha do Somme de Outubro a Novembro de 1916.

O impasse gerado pela enorme superioridade do fogo no campo de batalha obrigou os estrategas a procurar com pertinácia os meios e as formas de o ultrapassar - prolongados bombardeamentos (numa espécie de combate ao fogo pelo fogo), gases de combate, concentração de meios.

Mas só novas armas, que mais uma vez revolucionaram a forma de fazer a guerra, permitiram o desempate – gases (sem capacidade para decidir a batalha), carros de combate e aviação. Estes meios, ao combinarem o fogo, o choque, a protecção e o movimento, introduziram no campo de batalha a possibilidade de o comandante interferir na manobra, usando todos os elementos essenciais do combate, e de resolver o impasse. Os aliados desenvolveram estes meios com mais rapidez e em maior quantidade e foi isso que lhes permitiu chegar à vitória. Ainda não tinha chegado o tempo de encontrar formas de oposição à acção das novas armas.


Aspecto de uma trincheira na frente ocidental.
Por isso, foi só no Verão de 1918 que a ofensiva aliada levou de vencida os exércitos alemães, que se viram obrigados à assinatura do Armistício em 11 de Novembro.
Terminava assim a Grande Guerra. Mesmo que a História viesse a provar a ilusão em que a esperança se transformou, a verdade é que um enorme sentimento de libertação se apoderou das martirizadas populações europeias.
Como todos sabem, desta vez, os motivos de confiança nas condições de paz eram limitados e essas condições constituíram-se, elas próprias, como razões da continuação do conflito.