sábado, 28 de janeiro de 2017

A PROPÓSITO DE UM LIVRO DE DAVID MARTELO - A ESPADA AINDA TEM DOIS GUMES?



O David Martelo lançou em 1999 o seu terceiro livro a que chamou “A Espada de Dois Gumes”. Teve a gentileza de me convidar para fazer a sua apresentação. Publico agora o texto que me serviu de base para essa apresentação, tanto em Lisboa, como no Porto.





Gostaria de começar por agradecer ao David Martelo o convite que teve a gentileza de me fazer, no sentido de eu dizer algumas palavras na apresentação deste seu livro. Aceitei com muito agrado e aqui lhe manifesto publicamente o meu apreço pela obra que vem construindo.

Em três anos consecutivos, o David Martelo trouxe a público três livros. Tenho seguido com grande atenção a sua obra, até porque o David Martelo me tem dado o privilégio de ler os seus escritos antes de serem publicados. Em todos lhe prestei a colaboração que me pediu, com diligência e sinceridade.

Em 1997, O David Martelo trouxe a público (evidentemente com o apoio da sua editora, a Europa-América) o seu primeiro livro - "O Exército Português na Fronteira do Futuro".

Dele nos ficou a ideia de se tratar de cuidada análise das condicionantes estratégicas, políticas e militares de Portugal. Nele o autor apresentou soluções para o Exército do futuro. Através dele o autor propõe um modelo concreto para o problema militar.

Ficaram-me na memória, entre outras, três ideias fundamentais: Primeira - a discussão do conceito de fronteiras da soberania e fronteiras sentimentais, como base de dolorosos cortes e indispensáveis opções; segunda - a infindável hesitação de Portugal entre dois continentes, a África e a Europa; terceira - a necessidade de encontrar um rumo para o Exército, entre as opções do exército de conscrição e do exército profissional.

O David Martelo alertava então para a necessidade de "buscar soluções sérias para todos os anacronismos e obsolescências de que enferma a Instituição Militar". O que constatamos é que os caminhos percorridos nestes dois últimos anos são tímidos, desgarrados, por vezes contraditórios. Dificilmente poderemos distinguir uma estratégia; não se encontrou nenhum modelo, ou, pior ainda, o que se esboça não tem o consenso necessário e não apresenta soluções com uma eficácia mínima; em rigor, não foi apresentado nenhum plano. As medidas que se vão conhecendo são avulsas e prometem deixar o Exército a olhar para o seu umbigo, o pior que lhe pode acontecer.

Infelizmente, o David Martelo, há dois anos é bom notar, pregou no deserto e tinha razão quando deixava um alerta final: "É a batalha do conhecimento que urge vencer".

O ano passado, lançou o David Martelo, e a sua editora, um novo livro - "As Mágoas do Império".

Pareceu-me sempre que o David Martelo tinha deixado, no seu primeiro livro, uma questão por resolver. O autor intuía que, para pensar Portugal, para abordar todos os problemas que apontara em torno da Instituição Militar, era urgente fechar um caso pendente, limpar as sombras de uma História que parecia tolher-nos, desenvencilhar os portugueses de teias e de empecilhos sobreviventes. Em suma, era necessário libertar Portugal, radicalmente, do peso sobrante do Império. Cruzada para que o David Martelo, desta vez, partiu sozinho, em luta com fantasmas, com ignorâncias, com crendices, com esquizofrenias. O David Martelo tentou limpar o sótão de Portugal, colocando cada coisa no seu lugar, na sua dimensão e no seu tempo.

E abordou a questão do Império pelo lado irrecusável e envolvente.

O David Martelo não abordou o Império pelo lado da violência, da exploração ou da humilhação. Não o abordou pelo lado dos ódios. Nem sequer da nostalgia. Abordou-o pelo lado da mágoa, o que tem a vantagem de apelar ao debate. Apesar disso, o David Martelo encontrou a forma mais suave de nos dizer o que afinal foi dito, sempre com  palavras cautelosas, pensadas, magoadas, como gosta de fazer.

O império, se teve heroísmos, também teve vilezas; se teve compreensões, construiu-se em alicerces de violências; se teve actos de generosidade, teve um infindo rol de humilhações; se gerou benefícios mútuos, fundou-se em relações de exploração sistemática; se teve aproximações e relações equitativas, elas foram encobertas por uma prática comum de domínio - na escravatura, no trabalho forçado, na violência impune.

O David Martelo quis dizer-nos, com as suas "Mágoas", que do império  só restam duas coisas: fazer a História e olhar o futuro, guardar as mágoas e não repetir o passado.

O desafio enorme que o David Martelo lançou a Portugal e aos seus dirigentes foi este e muito simples: os povos que estiveram integrados no império português, conquistaram as suas independências. E desde esse dia (exactamente desde esse dia) são Estados livres, soberanos, iguais. Mesmo com mágoa, ou mal disfarçadas arrogâncias. E enquanto estes sentimentos não se extinguirem ou forem extirpados, as relações com esses povos e os novos Estados persistirão numa base incómoda.

O David Martelo quis dizer-nos estas coisas fundamentais. A discussão que se privilegiou, infelizmente, foi um "fait-divers", embora com a vantagem de confirmar as nostalgias que ainda sobram, afinal aquilo que o David Martelo tanto desejava ultrapassar.

Vem agora o nosso autor com o seu terceiro livro, "A Espada de dois Gumes".

Que poderei dizer-vos deste novo livro?

A ideia que tenho é que o David Martelo, homem de Abril e participante activo no regresso de Portugal ao Mundo, anda agora, de pena em punho, a arrumar todos os nossos sótãos, todas as nossas caves, todos os nossos recônditos esconderijos.

A maior parte dos portugueses, a instituição militar, cada um de nós, tem contas a saldar com histórias da sua própria vida. O David Martelo tentou saldar as nossas contas com o império. Quer agora aliviar-nos do crédito ou do débito com o Estado Novo - com o "fascismo" ou com a "Revolução Nacional".

Não fomos capazes de pensar a instituição militar, como nos propunha no seu "Exército Português", não parecemos capazes de cicatrizar as feridas imperiais, como nos aconselhou nas "Mágoas do Império", vamos ver agora se embainhamos esta "Espada de dois Gumes".

Quarenta e oito anos na história de um povo, no desenho da sua mentalidade e dos seus comportamentos, pode ser um tempo longo - porque se extinguiram as pontes geracionais, porque se quebrou a cadeia de transmissão de outras vivências e conhecimentos. O Estado Novo moldou-nos a todos - aos que o construíram e apoiaram, aos que se lhe opuseram e o combateram. Também aos que pretenderam ignorá-lo ou ser-lhe indiferentes, porque só poderia fugir ao molde do Estado Novo quem, sendo indiferente, ignorasse a própria vida.

Tem por isso razão o David Martelo em confrontar-nos com o nosso molde. E se é à instituição militar que ele tem dedicado o seu esforço de pensá-la e fazê-la pensar, compreende-se que centre as suas preocupações nas relações da instituição militar com o regime.

Não vos irei dizer como se coloca o autor perante esse mostrengo de uma cabeça, mil olhos e ouvidos, tentáculos sem conta de comprimentos variáveis. Nem do uso que foi feito da "espada" que a "criatura" usou sempre ao seu lado, nem da forma como os dois gumes se comportaram perante o "espadachim" e que relações mantiveram entre si.

Mas basta recordar a vossa própria experiência para saberem como tudo acaba, com a Espada libertando-se e libertando, assumindo, tão tardiamente, o inevitável - a decapitação do monstro. E como o povo, acompanhando a Espada, fez de um dia mágico - o 25 de Abril - o dia do seu renascimento.

Resta dizer-vos como o David Martelo, já sem fazer história, mas análise aos dias que correm, constata que a coragem de pegar na espada e com ela fazer justiça, está sendo paga com esquecimento, desprezo, vilipêndios.

Tudo isto é certo. Tudo isto merece um novo combate, a que não podemos furtar-nos. Mas deixa que te repita, meu caro David Martelo, as palavras do Otelo: "Ó pá! Fizemos uma coisa linda".

E isso, digo agora eu, ninguém nunca poderá roubar-nos.




domingo, 22 de janeiro de 2017

PORTUGAL E A GLOBALIZAÇÃO - FUNÇÕES DO ESTADO



Em 2015, a Associação de Oficiais das Forças Armadas (AOFA) publicou um livro sobre as funções do Estado no qual tive o gosto de participar com um texto que se intitulou “Portugal e a segurança num ambiente de globalização”. Apesar se esta área não ser de todo da minha esfera de interesses, não quis deixar de responder ao pedido da AOFA. Acabei por considerar essa participação uma experiência interessante, que alargou os meus horizontes.

Publico aqui esse texto e ao relê-lo verifico como as suas linhas principais se adequam ao tempo que passa…
  





Ideia geral
De acordo com as ideologias dominantes, as sociedades modernas têm perceções diferentes quanto às funções do Estado, mas existe hoje, na tradição democrática, a ideia das suas obrigações essenciais. Os objetivos que o Estado deve alcançar têm variado ao longo do tempo, inserindo-se frequentemente num conceito estratégico que os enquadra e afirma.
O desenho das funções do Estado só se torna consistente se tiver em conta não apenas as ameaças, as debilidades e as relações com outros Estados ou organizações, mas também a história, as tradições e a evolução do pensamento da sociedade acerca de si própria.
Na fase final do século XX assistiu-se, por exemplo, a uma mudança radical do conceito de segurança, em face da dinâmica do processo de globalização, que veio pôr em causa os padrões históricos das relações entre Estados.
A diferenciação entre o nacional e o estrangeiro conheceu uma erosão contínua, embora a emergência desta nova situação não tenha uma distribuição uniforme. Ao mesmo tempo que o global invadiu o quotidiano, alguns fenómenos locais mais próximos conheceram também uma expansão equivalente.
Podemos dizer que, desde as duas décadas finais do século XX, foi posto em causa o tipo anterior de relações entre Estados, pelas profundas alterações dos meios e das capacidades tecnológicas postas ao serviço do Homem. Em poucos anos, a humanidade passou a ser globalmente vizinha, com o dramático encurtamento das distâncias.
Esta nova circunstância obrigou a repensar o papel dos Estados, das suas funções e objetivos, e neste novo ambiente, a reequacionar a questão da segurança das populações e comunidades, que sempre foi um dos seus exclusivos fins.

A globalização e as suas consequências
Seguindo alguns especialistas, podemos afirmar que a globalização tem dois sentidos principais, historicamente interdependentes e de influências mútuas – a globalização político-económica e a globalização técnico-cultural. Por um lado, assistimos ao crescimento de uma economia mundial integrada (triunfo dos princípios capitalistas) e por outro, afirma-se um processo complexo de inter-relacionamentos do conhecimento, da informação, dos comportamentos, entre a valorização das componentes globais e da afirmação dos valores locais.
Neste ambiente, é possível salientar algumas características fundamentais para a análise do contexto de mudança da política mundial e das respetivas consequências, no enquadramento da segurança das comunidades e países.
Assim, devemos ter em atenção que a globalização se insere num grande movimento histórico com mais de cinco séculos, embora com uma dinâmica de aceleração a partir do último quartel do século XX nunca antes conhecida, e que, no ambiente atual, é um movimento irreversível. Os Estados, tal como os conhecemos, terão a sua capacidade de ação independente cada vez mais limitada. E embora possam continuar a deter uma fatia importante do poder de decisão, a soberania de cada um ficará cada vez mais limitada pela dinâmica da economia global.
Também devemos ter em atenção que a globalização está a demonstrar um efeito desigual, tanto no impacto da economia, como no processo cultural. Essas diferenças abrangem não apenas os Estados e as regiões, como os grupos e as classes sociais. O alcance das tecnologias que caracterizam a mudança é muito desigual, os impactos ambientais tendem a desfavorecer as regiões já desfavorecidas, as desigualdades, em todas as circunstâncias, acentuam-se entre os que têm e os que não têm, a insegurança aumenta onde ela já é precária.
De qualquer forma, a questão não tem a ver com a emergência da globalização, mas sobretudo com a sua natureza, e é aí que deve centrar-se o debate. As formas que têm sido privilegiadas, baseadas sobretudo em modelos ideológicos, acabam por impor soluções indesejadas pelas comunidades.
Ora, o que se torna indispensável é aproveitar o processo de globalização no sentido de procurar as melhores soluções para um conjunto de problemas que afetam os povos, direcionando as políticas para a obtenção de progressos com base no benefício múltiplo e numa visão mais adequada das necessidades do homem. No fundo, poderíamos aproveitar as oportunidades oferecidas pela globalização técnico-cultural para chegar a relações económicas de maior igualdade.
Finalmente, a era da globalização vem alterando muitos dos conceitos tradicionais ligados à segurança. De facto, o Estado está agora mais aberto e tem menos poderes para enfrentar as situações críticas, por si só. De certa forma, a globalização exige adaptação contínua em relação aos anteriormente indiscutíveis valores da soberania tradicional.

Portugal, contributo para um conceito de segurança
A história recente de Portugal alterou profundamente o seu posicionamento no concerto mundial, não só pelas consequências resultantes da Revolução Portuguesa de 1974, instauração do regime democrático e independências dos antigos territórios coloniais, como pela adesão de Portugal à CEE, depois transformada em Comunidade Europeia.
A primeira consequência visível foi o regresso de Portugal ao seu território inicial, de âmbito europeu, embora os cinco séculos de presença no mundo constituam um património histórico de valor incalculável e seguramente um elemento essencial na definição do papel de Portugal no mundo.
De acordo com análises habituais, outros elementos essenciais se têm considerado na definição dos objetivos do Estado português, no âmbito da segurança da sua comunidade.
Assim, com base na sua localização geográfica, devemos referir o valor das suas posições estratégicas no Atlântico e o vasto espaço marítimo e aéreo, onde confluem importantes rotas internacionais. Também tem sido considerado o efetivo valor das comunidades portuguesas espalhadas pelo mundo. Finalmente, nas últimas décadas, Portugal tem valorizado o seu posicionamento na comunidade internacional, pelo seu papel de parceiro construtivo e pacífico, de diálogo e de aproximação. Consideram-se ainda as mudanças no quadro das relações internacionais e respetivas consequências, como elementos de enquadramento das tarefas do Estado português, não apenas no contexto da segurança, mas também do seu contributo para a estabilidade e a resolução de conflitos. Finalmente, a participação na Comunidade Europeia alterou profundamente o conceito territorial, pela diluição das fronteiras e pelas consequências dos tratados europeus de livre circulação.
Simplificando, poderá dizer-se que a fronteira de segurança tende a ficar próxima da fronteira da Aliança Atlântica, que a fronteira económica tende a alargar-se à dimensão da União Europeia e que a fronteira cultural mantém em grande parte as componentes do espaço lusófono e da língua portuguesa.
Em consequência, pode inferir-se, por exemplo, que as atuais relações de Portugal com a vizinha Espanha se desenrolam tanto através das organizações internacionais em que ambos participam, como são relevantes os esforços conjuntos para a construção bilateral de uma nova relação.
Contudo, a sociedade portuguesa mantém debilidades que devem ser consideradas na definição do seu posicionamento no concerto das nações, sendo habitual destacar alguns problemas estruturais, como a incipiência do seu tecido produtor, a ausência de estratégias persistentes de desenvolvimento e de produtividade, as altas taxas de desemprego e a consequente fuga de população jovem qualificada, o envelhecimento da população, o desequilíbrio das contas públicas, o aumento das assimetrias sociais e regionais.
Tal situação tem-se traduzido na persistência da dependência histórica de apoios externos, nem sempre conseguidos em situação de mútua vantagem, pela debilidade negocial de Portugal.

A Constituição da República Portuguesa
As tarefas fundamentais do Estado português estão definidas no artigo 9º da Constituição. Entre elas incluem-se a garantia da independência nacional e criação de condições políticas, económicas, sociais e culturais que a promovam, a garantia dos direitos e liberdades fundamentais e o respeito pelos princípios do Estado de Direito democrático, a defesa da democracia política e a participação democrática dos cidadãos na resolução dos problemas nacionais.
Em consequência, a Constituição, no que respeita especificamente à Defesa Nacional, atribui ao Estado, no seu artigo 273, a obrigação de assegurar essa defesa, apontando os objetivos a garantir: “a independência nacional, a integridade do território e a liberdade e a segurança das populações contra qualquer agressão ou ameaça externas”, sempre “no respeito da ordem constitucional, das instituições democráticas e das convenções internacionais”.

Conceito Estratégico de Defesa Nacional
Desde os anos 80 do século XX, em especial depois da adesão de Portugal à CEE, aproximadamente coincidente com o fim da guerra fria, as prioridades estratégicas de Portugal têm sido consideradas no âmbito da Comunidade Europeia, da Aliança Atlântica e da Comunidade de Países de Língua Portuguesa. De forma genérica, Portugal tem enunciado alguns interesses orientadores da sua presença no mundo – afirmação da sua identidade, inserção num conjunto de alianças determinantes para a sua segurança e defesa, assim como para a sua prosperidade, afirmação da sua credibilidade como Estado, valorização das comunidades portuguesas, e contribuição para a paz e o progresso internacionais.
As várias versões do Conceito Estratégico de Defesa Nacional que têm sido aprovadas vêm reconhecendo a decisiva importância do vetor militar no apoio à política externa do Estado, como instrumento de participação frequente em ações geradoras de segurança internacional.
Por outro lado, a mudança do sistema mundial, que a globalização tem proporcionado, vem acentuando uma progressiva interdependência mundial, que se estende da política à economia e mesmo aos sistemas de defesa e militares. Tal situação impõe uma constante atenção à capacidade de relacionamento internacional e à articulação das políticas comuns no âmbito da rede dos aliados e países amigos, à gestão dos riscos e das ameaças e à concertação de políticas internas que contribuem para o fortalecimento das capacidades de Portugal.



Conclusões
Em conclusão, é indiscutível que os Estados democráticos assumem atualmente um conjunto de funções inalienáveis, entre as quais se conta a criação de um ambiente de segurança, que os cidadãos e as comunidades apreciam e exigem. Mas o processo de globalização, e em especial a aceleração que conheceu desde as duas décadas finais do século XX, têm obrigado os Estados a rever e adaptar as suas funções, sem que tal signifique qualquer substancial alteração do conceito de segurança ou doutras funções essenciais do Estado. O novo ambiente criado pelas mudanças nas relações dos povos, das comunidades e dos Estados, face à globalização, tem exigido uma progressiva mudança no relacionamento entre Estados, tornando cada vez mais complexa a matriz das relações internacionais, em especial no que respeita à componente da segurança. No que lhe diz respeito, Portugal vem contribuindo de forma positiva para a criação de um ambiente internacional de paz, estabilidade e resolução de conflitos, no âmbito próprio ou em coordenação com os seus parceiros e aliados, tanto da Comunidade Europeia, como da Aliança Atlântica, como da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa.
Porque a Constituição da República Portuguesa contém um conjunto de obrigações do Estado, tanto no que respeita às suas tarefas fundamentais, como aos objetivos a garantir no âmbito da Defesa Nacional, os poderes democráticos têm estabelecido um Conceito Estratégico de Defesa Nacional, a que todos os componentes do Estado se acham vinculados.
Em suma, enquanto as mudanças no sistema mundial vêm criando uma obrigação de permanente adaptação das políticas de relacionamento internacional, o Estado português deverá preservar uma capacidade de atuação própria no concerto das Nações e dos novos poderes, por forma a garantir o essencial das suas funções, sob pena de contribuir para a sua irrelevância e autodestruição.
No âmbito da segurança e da defesa, o Estado português não pode deixar de conciliar o seu papel no seio das organizações internacionais e dos tratados que o obrigam, com a afirmação dos seus interesses próprios e inalienáveis, canalizando os recursos adequados ao cumprimento dos seus objetivos de afirmação da identidade e da prosperidade do povo português.
Finalmente, as Forças Armadas, como componente essencial da defesa nacional, devem poder desempenhar cabalmente as missões que lhe estão atribuídas, tanto no âmbito da prevenção da paz e segurança, como na participação em missões internacionais previstas nos tratados assinados por Portugal.


Referências bibliográficas principais:
BOOTH, Ken, “Teorias e Práticas da Segurança no Século XX:
Sequência Histórica e Mudança Radical”, Nação e Defesa, Outono 2001, pp. 19-50. Ver em: http://comum.rcaap.pt/bitstream/123456789/1439/1/NeD099_KenBooth.pdf
FERREIRA, Pedro Teles, Política Externa e Defesa Nacional: Razões de Estado. Contraditório Think Tank, Julho 2013. Ver em: www.contraditorio.pt
SANTOS, José Alberto Loureiro dos, “O Estado e as Políticas de Defesa”, Revista Militar, Dezembro de 2007. Ver em: http://www.revistamilitar.pt/artigo.php?art_id=250



domingo, 15 de janeiro de 2017

VOZES DE ABRIL NA DESCOLONIZAÇÃO



Em 2015, o ISCTE e a A25A publicaram um livro com o título “Vozes De Abril na Descolonização”, baseado em entrevistas a três militares de Abril, um por cada território, efetuadas por uma equipa do ISCTE, no âmbito de um projeto mais vasto apoiado pela A25A. Foi coordenado por Ana Mouta Faria e Jorge Martins.

Os militares entrevistados são:
Pela Guiné: Carlos de Matos Gomes
Por Angola: José Villalobos Filipe
Por Moçambique: Nuno Lousada.

Tive o privilégio de apresentar o livro, e julgo que talvez seja oportuno publicar aqui o texto respetivo.





(…)
Como já está esclarecido o contexto do livro e a sua inserção num projeto do ISCTE e da A25A, será melhor passarmos à sua análise.

A Apresentação do livro é feita pela Prof.ª Ana Mouta Faria, onde procura esclarecer o contexto do projeto e deste livro em particular.

Concentrando-se nos três entrevistados, diz-nos o seguinte:

Existem entre todos, cinco traços comuns:

- Integrarem as Forças Armadas, enquanto profissionais;
- Terem cumprido várias comissões de serviços nos teatros de operações africanos;
- Terem larga experiência de guerra;
- Terem aprendido o respeito pelo adversário combatente e o reconhecimento da legitimidade das aspirações emancipalistas;
- Terem consciencializado que a única saída para a guerra colonial era política e não apenas militar.

Mas existem também cinco diferenças muito acentuadas:

- Pertencem a duas gerações distintas;
- São de diferentes Ramos das Forças Armadas;
- São diversos os momentos de adesão ao movimento político-militar revolucionário;
- Traduzem a sua adesão em diferentes graus de compromisso com o Movimento;
- São diferentes as características de cada personalidade.

Também há uma característica comum aos três entrevistados: A partir de Abril de 1974 vão ser nomeados/eleitos para funções político-militares nos respetivos territórios e vão assumir funções de maior ou menor responsabilidade depois do regresso a Portugal.

Os temas anunciados na Apresentação que irão ser abordados nas entrevistas são os seguintes:

- Participação no Movimento dos Capitães / MFA (sobretudo nos teatros de operações);
- Génese e estruturação do Movimento dos Capitães / MFA nos territórios;
- Impacto do 25 de Abril em cada lugar;
- Relacionamento e contactos com os movimentos nacionalistas;
- Conversações prévias e Acordos diplomáticos da descolonização;
- O dia da independência.

(…)

Na Introdução, sobre a génese do MFA, os autores procuram dar-nos uma ideia geral das circunstâncias do movimento conspirativo nas Forças Armadas, e mais particularmente nos territórios em guerra.

Dizem-nos que essencialmente o percurso conspirativo vem do Congresso dos Combatentes, passa pelos decretos das capitães, segue com as reuniões e organização das comissões, passa pelos acontecimentos da Beira e seu significado e desemboca no 25 de Abril.

Indicam-nos alguns nomes do movimento nas colónias, Guiné, Angola e Moçambique, e passam depois ao pós-25 de Abril.

Fazem um apontamento sobre a organização do MFA nos vários territórios e sobre o papel que assumiu, centrando-o em dois objetivos principais:

  •            Controlar o desmoronamento das Forças Armadas;
  •    Garantir uma transição pacífica até ao cumprimento dos acordos de independência.


Seguem-se então as entrevistas, que são bastantes desiguais.

A mais extensa, articulada e consequente é a do Carlos de Matos Gomes, em relação à Guiné. Ele foi um dos elementos fundamentais na constituição do movimento dos capitães, na reação aos problemas que se levantaram ao seu percurso, nos acontecimentos do 25 de Abril e sua sequência, com a tomada do poder pelo MFA, e na condução dos contactos com elementos do PAIGC, pelo menos até ao final de Julho de 1974, altura em que regressou a Portugal.
Como é próprio da sua personalidade, aproveita a oportunidade para falar do que pretende, para esclarecer posições, para aprofundar razões, para deixar mensagens importantes.

Fala da sua participação no movimento dos capitães/MFA, da génese e estruturação do MFA na Guiné, no impacto do 25 de Abril no território, no relacionamento e contactos com elementos nacionalistas do PAIGC no território.

Da Guiné, já tínhamos as memórias do Jorge Golias, publicadas em 2005 com o título “Histórias de Guerra” e do Duran Clemente, texto publicado em 2014 no facebook da A25A, com o título “DESCOLONIZAÇÃO - A Guiné, o 25 e Abril e o reconhecimento da sua independência” (Nota: foi entretanto publicado o livro de Jorge Sales Golias, A Descolonização da Guiné-Bissau e o Movimento dos Capitães, Colibri, 2016)

Temos, agora, felizmente, a versão do Carlos de Matos Gomes.

A entrevista do Villaboas Filipe é muito interessante. Desde logo, porque é um elemento do MFA de Angola a falar, o que tem sido raro. Com exceção do Pezarat Correia, não conheço outros testemunhos.

Mas a história é substancialmente diferente da história do Matos Gomes.

O Villalobos, também por ser da Força Aérea, não pertenceu ao Movimento dos Capitães. A sua participação é posterior ao 25 de Abril, quando foi nomeado (e depois eleito) para representar a Força Aérea no Gabinete do MFA que se constituiu em Angola. Ele explica todas as circunstâncias na sua entrevista.

Este Gabinete do MFA em Angola é muito surpreendente. Integrava seis oficiais do MFA, sendo dois do Exército, dois da Marinha e dois da Força Aérea! Julgo que será um caso único!

Em Moçambique, a primeira comissão, logo a seguir ao 25 de Abril, vinha do movimento dos capitães, que era aberta a elementos dos outros Ramos, mas que nunca integraram a comissão. Quando foram constituídos os órgãos do MFA, ficou o Gabinete junto do CC, com três oficiais do Exército, um da Marinha e um da Força Aérea, e a Comissão junto do GG, com quatro oficiais do Exército (um miliciano), um da Marinha e um da Força Aérea.

Na Guiné, a Comissão Coordenadora ficou constituída pela paridade de 5+4+4, sendo o núcleo permanente de 2+1+1.

O Villalobos fala da sua relação com o MFA, da génese e estruturação do MFA em Angola, do impacto do 25 de Abril no território, do relacionamento e contactos com os movimentos nacionalistas e também das conversações prévias e dos acordos. Aproveita para ir fazendo uma história das dificuldades, das incongruências, do confronto de projetos, do comportamento das pessoas e dos comandantes, das fases do processo de transferência de soberania em Angola, pelo menos até ao seu regresso a Portugal, em fins de Junho de 1975, mais de um ano depois do fim da sua comissão.

O Villalobos tem uma visão muito lúcida sobre a situação, descrevendo um quadro muito próximo daquilo que foram os tremendos desafios que se colocaram ao MFA de Angola.

Acho que precisamos de mais testemunhos deste processo.

Finalmente o Nuno Lousada fala de Moçambique. A sua entrevista concentra-se no conhecido episódio de Lusaca, onde ele ficou depois das negociações, enquanto em Lourenço Marques, um grupo de brancos extremistas e irresponsáveis agia contra a nova realidade numa ação que podemos classificar de “crime sem perdão”.

É pena que o Nuno Lousada não tivesse querido abordar outras questões que lhe foram colocadas e limitasse a entrevista a esse episódio. Paciência! Pode ser que surjam ainda outros testemunhos, no âmbito deste projeto. Eu próprio já fui entrevistado e espero que outros protagonistas o tenham sido ou venham a ser.

Voltando ao livro que aqui apresentamos, vem, depois das entrevistas, uma cronologia comparada dos vários processos, tentativa que me parece inédita e que resulta muito elucidativa. Julgo que carece de novos factos, mas esta primeira versão transmite já uma interessante possibilidade de acompanhar os acontecimentos em cada um dos territórios em estudo, assim como em Portugal.

Na última parte, os autores fazem uma síntese dos contributos de cada um dos entrevistados para o conhecimento dos processos de independência, muito útil para melhor conhecermos quem eles são e o que fizeram.




domingo, 8 de janeiro de 2017

GUERRA COLONIAL - ESTAVA O EXÉRCITO PREPARADO?




Parte 4


Chegada de material de guerra ao porto de Lisboa, década de 50 (AHM).


Apesar de tudo isto, destas bases fundamentais para a acção, a verdade é que nem sequer o conceito de exército territorial chegou a sofrer um grande abalo com as reformas de Almeida Fernandes, pois Câmara Pina, que continuou chefe do Estado-Maior do Exército até 1969, ano da sua passagem à situação de Reserva, encarregou-se de fazer dele, como sempre fora, dentro do regime, uma força de ocupação do terreno. O seu exército, metropolitano ou ultramarino, baseado em unidades implantadas em superfície, para controlarem áreas e pontos importantes e defenderem fronteiras e vias de comunicação, era sobretudo um exército para manter a ordem e a soberania. Daí até à adopção do conceito de quadrícula, em que todo o território é dividido e subdividido em zonas de acção de unidades de diversos escalões, foi um passo simples.

Na verdade, a criação de unidades e estruturas afectas à NATO nos anos 50, não chegou a alterar substancialmente o conceito de exército de massas que caracterizava o Exército Português na Metrópole. A Divisão SHAPE (3ª Divisão) com sede em Tomar e depois em Santa Margarida, onde se situava também o respectivo campo de manobras, foi um corpo de certa forma estranho ao exército que alguns chefes militares queriam que continuasse adormecido nos quartéis (6). Também o movimento descolonizador, em crescimento desde a Segunda Guerra Mundial, não logrou convencer esses chefes da necessidade de reorganizar o Exército para combater em África. O conceito de Câmara Pina para o Exército seguia a ideia de Salazar - acima de tudo, não devia ser pesado ao orçamento nacional.

Um Exército de mobilidade exigia investimentos em meios e em pessoal, viaturas de vários tipos, helicópteros, técnicos preparados para operarem e manterem os sistemas de armas. Mas para ser barato, o Exército devia dispor de poucas viaturas de transporte (as primeiras de que dispôs eram as que equipavam as unidades NATO), poucos blindados, poucas viaturas de engenharia militar. Resultaram daqui as dificuldades de progressão que se tornaram visíveis nas fotografias da época das unidades pelos itinerários do Norte de Angola – abatizes levantados à força de braço, pontes improvisadas, militares de peito descoberto em cima de jipes armados com uma metralhadora!

É um Exército que não foi organizado nem preparado para combater, que está equipado com a espingarda de repetição Mauser como arma individual, que não tem equipamentos de rádio, excepto e mais uma vez, os que equipavam as unidades NATO, e que não se adaptavam às imensas distâncias do novo teatro de operações. Um Exército que em 1961 não tem uma mochila, um equipamento individual de combate onde pendurar as cartucheiras e o cantil, que não tinha um uniforme de combate!

O modelo de organização para responder à situação de guerra nos territórios ultramarinos resultou da improvisação devida à ausência de planeamento. Colocadas perante uma situação de sublevação, as Forças Armadas (e, em especial, o Exército) tiveram que actuar em duas frentes: a acção militar directa através de operações militares – a sua tarefa principal – e o assumir da administração civil. Se a primeira das missões era exclusiva dos militares e só eles a podiam realizar, já a segunda, que foi designada genericamente como acção psicossocial, foi fruto da ausência de uma efectiva administração civil nos territórios onde decorreu a guerra.

Em suma, o Exército Português iniciou a guerra colonial sem estar preparado, mesmo que tenha havido, nos últimos anos um notável esforço de mudança, a que Salazar não chegou a dar apoio. Os sinais eram claros, mas os orçamentos eram escassos. A ditadura portuguesa vivia dos mitos que criara, vivia da nação una e indivisível, da pátria pluricontinental e multirracial. Entretanto, na zona Norte de Angola, a mais exposta a possíveis ataques, não existia nenhuma unidade militar! A Marinha não dispunha de uma só lancha com capacidade para patrulhar o rio Zaire, que seria uma das fronteiras por onde os guerrilheiros passariam obrigatoriamente. A aviação militar não tinha qualquer base aérea permanente em Angola, sendo os aviões destacados das bases da Metrópole. Não existia um sistema de comunicações militares. Não existia um sistema de logística. Não havia legislação apropriada a acções militares.

A inacção do governo de Salazar face aos sinais e às notícias que chegavam de África continua sem explicação racional. A existência da UPA era conhecida desde 1957, data da independência do Gana. A independência do Congo Belga ocorreu em Junho de 1960 e provocou uma vaga de refugiados entre a grande colónia portuguesa ali residente, mas o governo manteve em Angola as Forças Armadas como se nada tivesse mudado, com um dispositivo de tropas ultramarinas, mal armadas e mal organizadas.

Por tudo isso e por muitas outras razões, é altura de alargar ainda mais a investigação histórica a estes acontecimentos e de realizar reuniões e debates, como este em que agora participamos.

……
(6) A partir de 1957, a grande unidade atribuída à OTAN — 3ª Divisão ou Divisão Nun’Álvares — encontra-se constituída. A maior parte do seu efectivo, de cerca de 18.000 homens, é obtido por mobilização de pessoal na situação de disponibilidade. O respectivo Quartel General instala-se definitivamente em Santa Margarida. A organização da 3ª Divisão corresponde, igualmente, ao início da influência dos EUA nas Forças Armadas portuguesas. Essa influência reflecte-se, claramente, na doutrina táctica adoptada e nos novos armamentos e equipamentos.         



GUERRA COLONIAL - ESTAVA O EXÉRCITO PREPARADO?



Parte 3


Almeida Fernandes e Costa Gomes, dois membros da equipa
da Defesa, chefiada por Botelho Moniz (AHM).

Já depois da mudança interna provocada pela “Abrilada”, o coronel Fernando Valença escreveu, em Setembro de 1961, um documento de defesa da acção de Almeida Fernandes como ministro do Exército em que esclarece algumas destas dúvidas. A primeira referência aparece quando o autor enumera as medidas tomadas por Almeida Fernandes, enquanto ministro, e se refere à “Criação do Centro de Instrução de Operações Especiais (5) e das unidades de Caçadores Especiais”, comentando a propósito: “Com estas medidas foi concretizada, pela primeira vez entre nós, a preocupação essencial do estudo dos problemas e da preparação inerente à defesa do nosso ultramar – objectivo fundamental da nossa política militar de sempre” (com esta última parte sublinhada no original). Mas Fernando Valença, íntimo colaborador de Almeida Fernandes, não poderia deixar de se referir ao problema de Angola, já que em Setembro de 1961 ele constituía a única e grande preocupação do Exército. Sempre em defesa do seu ministro, fá-lo da seguinte maneira: “Convém nesta altura acentuar que nos temos apenas referido à obra reformadora do coronel Almeida Fernandes em prol da organização do Exército. Às deficiências verificadas a partir de Março do corrente ano no dispositivo militar de defesa de Angola e a manifesta impreparação do Exército para o desempenho das missões que lhe competem no Ultramar, só lhe podem caber responsabilidades indirectas e muito limitadas”. Porque, justifica Fernando Valença, “As responsabilidades directas, no que toca às actividades operacionais do Exército no Ultramar, cabem à Defesa Nacional, ao Conselho Superior Militar e, dentro do Exército, mais tecnicamente, ao Chefe do Estado Maior do Exército”.

Como sabemos, o general Botelho Moniz tentou, nesses meses finais do seu mandato, antes de Abril de 1961, uma solução próxima aos “ventos da História”, envolvendo o apoio da nova Administração americana, no sentido de apontar um caminho aceitável para a interminável e insolúvel questão colonial portuguesa e, ao mesmo tempo, o chefe do Estado-Maior do Exército, general Câmara Pina, regressado de Angola, onde acompanhou os acontecimentos de Março de 1961, apoiava, com grande ligeireza, as palavras do chefe do Estado-Maior-General, Beleza Ferraz, que seguira na mesma visita: “A situação em Angola está em vias de franco restabelecimento. As Forças Armadas têm cumprido admiravelmente o seu dever. É de esperar, por isso, que dentro em breve todos os bandos terroristas, vindos do exterior, sejam completamente expulsos e a calma e o sossego voltem de novo a reinar na nossa bela e querida província de Angola”. E acrescentava que, brevemente, a acção militar ficaria reduzida a simples acções de polícia.

Ou seja, entre, por um lado, as preocupações políticas de consertar com o embaixador americano um apoio à capacidade militar portuguesa, assim como de convencer Salazar a aceitar mudanças que necessariamente o derrubariam, e, por outro lado, as preocupações de levar à prática uma profunda mudança organizativa das Forças Armadas, para se adequarem aos tempos modernos, a equipa militar de 1958 não conseguiu nem convencer Salazar, nem concretizar o apoio americano, nem preparar o Exército para o iminente conflito africano.

Apesar de todas estas circunstâncias, a verdade é que, no início de 1959, o ministro do Exército tinha nomeado, passando por cima das orientações contidas nos documentos de enquadramento iniciais, uma comissão para estudar as “condi­ções particulares que envolvem a segurança dos vários territórios da Nação Portuguesa, quer metropolitanos, quer — e, sobretudo — ultramarinos”, tendo em vista a criação de “unidades especiais de intervenção imediata”. E logo de seguida, em Abril do mesmo ano, Almeida Fernandes assinava uma Directiva sobre a necessidade de organização de unidades terrestres para operações de contra-guerrilha para actuação no Ultramar.

Reorganizado o Ministério do Exército, que passou a ter jurisdição militar sobre os territórios coloniais, outra Directiva do ministro, publicada em Outubro do mesmo ano de 1959, acerca da nova “Política Militar Nacional”.

O ministro do Exército foi o primeiro dos responsáveis militares a traduzir numa directiva geral para o seu Ramo as novas orientações da política de defesa definidas pelo Presidente do Conselho, pelo Conselho Superior de Defesa Nacional e pelo ministro da Defesa. Antes de enunciar as “Directrizes para as actividades do Exército”, o documento refere as “bases da nossa política militar a ter em conta em todas as actividades futuras das Forças Armadas”. Essas bases, que representavam uma radical mudança de política nacional, eram as seguintes, de forma abreviada:

“a) Evitar, cuidadosamente, novos compromissos com a NATO (…);
b) Manter as ligações militares com a Espanha com vista à defesa pirenaica, mas considerando-as mais como elemento de apoio e reforço da política, que atinentes ao concerto duma efectiva e eficaz defesa;
c) Aumentar, na medida do possível, o esforço de Defesa do Ultramar. Realizar este esforço pela seguinte ordem de prioridade: Guiné, Angola, Moçambique (…);
d) Manter na Índia, em Macau e em Timor as forças que bastem para assegurar os limitados objectivos que ali temos (…);
e) Quanto aos arquipélagos de Cabo Verde e São Tomé e Príncipe, considera-se que, de momento, não há problemas especiais a enfrentar (…);
f) Intensificar o esforço militar no Ultramar, procedendo à remodelação da orgânica militar na Guiné, Angola e Moçambique, de forma a torná-la adequada à guerra subversiva (…);
g) Intensificar a contribuição da Força Aérea na defesa do Ultramar (…);
h) Procurar intensificar a política de colaboração diplomática com os países amigos e aliados vizinhos em África, a fim de se evitar ou limitar a acção de infiltração e de premente ameaça que procura subverter as nações ocidentais, estabelecendo os contactos e as alianças necessárias para a defesa dos interesses comuns no Ultramar, beneficiando indirectamente a NATO.”

Mas atenção! Estes documentos não traduzem necessariamente medidas tomadas, eles indicam apenas uma ordem de esforços e a concentração de meios existentes.

De facto, o orçamento não acompanhou as intenções de mudança. De qualquer modo, com este conjunto de diplomas, foi criada uma estrutura prévia, que serviria para o futuro e que, de facto, foi implantada quando a guerra começou.

……

(5) De facto, ao iniciar-se a década de 1960, a percepção da ameaça que pende sobre o Ultramar leva à criação de um centro de instrução destinado a preparar quadros para as operações de contra-insurreição (Decreto 42.926, de 16 de Abril de 1960). É, assim, organizado o Centro de Instrução de Operações Especiais, o qual fica instalado na cidade de Lamego no aquartelamento do Regimento de Infantaria n.º 9, que é extinto.