terça-feira, 29 de novembro de 2016

O QUE FAZER COM O MOVIMENTO DOS CAPITÃES?




Num post anterior já referi que eu e o Carlos de Matos Gomes tivemos acesso ao Arquivo Marcelo Caetano depositado na Torre do Tombo, quando estudávamos o acordo secreto do colonialismo, o Exercício Alcora, entre Portugal e os regimes racistas da África do Sul e da Rodésia nos anos finais da guerra colonial. Foi também nele que encontrámos a ata de uma reunião de altos comandos no dia 11 de março de 1974.
Publiquei a ata no boletim “Referencial” da A25A, no número de abril-junho de 2011, saindo com o título “Uma Acta de Viana de Lemos”, que altero para a sua publicação neste blogue.


Brigada do reumático, ou o apoio dos responsáveis
militares à política de Marcelo Caetano
nas vésperas do 25 de Abril de 1974.
Numa investigação sobre as relações de Portugal com a África do Sul nos anos finais da guerra colonial, que eu e o Carlos de Matos Gomes estamos a fazer, veio-nos parar às mãos uma acta de uma reunião havida na Defesa Nacional em 11 de Março de 1974. Está na correspondência de Carlos Viana de Lemos para Marcelo Caetano, no Arquivo Marcelo Caetano depositado na Torre do Tombo, o qual fomos autorizados a consultar por Miguel Caetano, filho do antigo Presidente do Conselho de Ministros.
Por nos parecer relevante para esclarecer alguns posicionamentos de altas figuras da hierarquia do Estado Novo, em relação a alguns aspectos do movimento dos capitães e da situação política nas vésperas do 25 de Abril, achámos que deveríamos dar-lhe publicidade, trazendo-a ao conhecimento público.

É o seguinte o seu texto:

“Acta resumo de uma reunião realizada no Departamento da Defesa Nacional, em 11 de Março de 1974.
Por convocação de S. Exa. o Ministro da Defesa (1) reuniram-se, pelas 11 horas do dia 11 de Março de 1974, os Srs. Ministros do Exército (2) e da Marinha (3), o Secretário de Estado da Aeronáutica (4), o Subsecretário de Estado do Exército (5) e o Chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas (6).
Abriu a sessão o Sr. Ministro da Defesa Nacional que comunicou que o objectivo da reunião era o de se estudar se se deveriam continuar a adoptar medidas de segurança nas Forças Armadas para fazer face à situação presente e, em caso afirmativo, qual o grau que essas medidas deviam assumir. Punha o problema à consideração dos Ministros militares.
Falou em primeiro lugar o Sr. Ministro do Exército que deu conta que nessa manhã às 08h00 se havia passado ao estado de alerta estando prevista a passagem ao estado de prevenção simples às 21h00 (…)
O Sr. Ministro da Marinha concordou, na generalidade, com esta opinião, mas afirmou que optava pela manutenção de um único estado de segurança, que poderia ser o de prevenção simples (…)
O Sr. Secretário de Estado de Aeronáutica declarou que preferia igualmente um único estado de segurança (…)

Falou seguidamente o CEMGFA que principiou por se queixar da falta de informações com que o Comando Geral de Segurança Interna lutava, pois não recebia dos Estados-Maiores dos três Ramos, nem das forças de segurança e poucas da DGS. Contudo considerava a situação muito grave e resultante de terem sido tomadas medidas de força que considerava inoportunas face à situação de momento. Historiou o chamado “movimento dos capitães” iniciado como reacção contra a publicação do DL 353 (7), e que deu origem à apresentação de várias reivindicações. Após ter tomado posse a nova equipa governamental havia constatado uma tendência que permitia concluir que os espíritos se estavam acalmando, mas ultimamente essa tendência havia sido destruída. Primeiro, os incidentes da Beira (8), entre a população civil e os militares haviam provocado um largo movimento de solidariedade militar que se estendera a outras Províncias Ultramarinas e à Metrópole, movimento esse que se consubstanciava num manifesto com 470 assinaturas (9). Considerava igualmente como factor responsável pelo agravamento da situação, o facto de se ter realizado uma reunião de comandos no Ministério do Exército “a que não tive a honra de assistir” e bem assim as medidas tomadas ultimamente como a transferência de alguns oficiais (10). Considerava a situação extremamente grave devido à não aceitação por muitos militares das vias hierárquicas, pois os generais não tinham prestígio, mais concluindo que certamente nenhum dos membros do Governo ali presentes poderia controlar a evolução de qualquer situação dentro do seu Departamento. Aliás, pedia autorização para, na presença do Sr. Ministro da Defesa, apresentar estas considerações a S. Exª. o Senhor Presidente do Conselho.
O Sr. Ministro da Defesa replicou afirmando que o Sr. CEMGFA tinha acesso ao Sr. Presidente do Conselho e que poderia pedir audiência sem que ele estivesse presente. Considerou em seguida que os comentários apresentados pela CEMGFA excediam em muito o âmbito da reunião e que até se poderiam relacionar com o equacionamento da política do Governo. Sobre este ponto queria lembrar que essa política estava definida e que aos membros do Governo, ou às pessoas da sua confiança, apenas restava um caminho que era segui-la sem hesitação.
Pessoalmente e no que se referia à agitação dos capitães distinguia três hipóteses:
- aceitar as suas reivindicações o que implicaria o abandono imediato das funções governamentais por tal ser incompatível com o compromisso de honra prestado quando as aceitou;
- pretender que se ignore ou não se perceba o que se está a passar, deixando as coisas avolumarem-se e ignorando que há quem não se queira bater e prefira situações mais cómodas e mais remuneradas;
- tentar, por todos os meios, dominar a situação.
Tendo, em consciência, a certeza de que a política do Governo era a que convinha à Nação, não poderia logicamente aceitar as duas primeiras soluções. Contudo desejava que o debate se não generalizasse neste âmbito e se limitasse apenas ao assunto que fora objecto da convocação.
O Sr. Ministro do Exército apoiou firmemente a posição do Sr. Ministro da Defesa que considerou a única admissível. Esclareceu igualmente que a posição assumida, relativamente aos três oficiais que foram transferidos, não podia de forma alguma ser considerada dura uma vez que haviam infringido os deveres 1º, 25º e 27º do RDM, o que os tornava passíveis de procedimento disciplinar.
O Sr. Ministro da Marinha, para além de exprimir a sua concordância, pedia que lhe perdoassem a vaidade, mas que, após cinco anos de permanência na sua pasta, não podia aceitar a afirmação que fora feita de que não seria capaz de controlar o seu Departamento.
O Sr. Secretário de Estado da Aeronáutica apoiou calorosamente a posição e a tese dos Srs. Ministros da Defesa e do Exército afirmando que, pessoalmente nunca quereria estar à frente de um Departamento em que o comando se efectuasse de baixo para cima. Afirmou igualmente não duvidar que podia controlar o seu Departamento.
O Sr. CEMGFA afirmou que, embora fora do âmbito da reunião, tinha querido, para ficar de bem com a sua consciência, apresentar as suas considerações e que o fizera pois julgava a situação grave nos três Teatros de Operações, dizendo a propósito que o Sr. General Bettencourt Rodrigues regressara a Bissau cheio de apreensões (11).
Finalmente foi decidido e determinado que o Sr. CEMGFA comunicasse aos três Ramos que, até nova ordem, as unidades se manteriam em estado de alerta.

Lisboa, 11 de Março de 1974.

Carlos Viana de Lemos”.

………

(1) Ministro da Defesa Nacional – Joaquim Moreira da Silva Cunha, nomeado em 7 de Novembro de 1973, em substituição de Horácio Sá Viana Rebelo.
(2) Ministro do Exército – Alberto de Andrade e Silva, general, nomeado na mesma remodelação de 7 de Novembro de 1973.
(3) Ministro da Marinha – Manuel Pereira Crespo, contra-almirante, que ocupava o cargo desde 27 de Setembro de 1968, primeiro governo de Marcelo Caetano.
(4) Secretário de Estado de Aeronáutica – Mário Telo Polleri, general, que também entrara em 7 de Novembro de 1973.
(5) Subsecretário de Estado do Exército – Carlos Viana Dias de Lemos, o autor da ata e que tomara posse também em 7 de Novembro de 1973.
(6) Chefe do EMGFA – Francisco da Costa Gomes, general, no cargo desde 12 de Setembro de 1972. Viria a ser demitido do cargo exactamente três dias depois desta reunião, a 14 de Março de 1974.
(7) O general Costa Gomes refere-se ao DL 353/73 de 13 de Julho, relativo às carreiras dos oficiais do Exército e que se considera estar na origem do movimento dos capitães.
(8) Referência aos chamados “Acontecimentos da Beira”, ocorridos nos dias 17 a 19 de Janeiro na cidade da Beira, em Moçambique, e traduzidos em grandes manifestações da população branca contra as Forças Armadas e os militares, acusados de não se esforçarem para dar uma solução rápida à guerra subversiva, deixando que esta alastrasse para Sul e chegasse às zonas com mais população branca.
(9) Este manifesto foi elaborado pela Comissão Coordenadora do Movimento dos Capitães em Moçambique logo em 23 de Janeiro, exigindo uma série de medidas no sentido de não haver repetição dos acontecimentos, mas também focando a necessidade de ser bem explicada a função das Forças Armadas numa guerra subversiva a toda a população.
(10) Refere-se à prisão, ordenada pelo Governo, dos capitães Vasco Lourenço, Antero Ribeiro da Silva e Pinto Soares, todos pertencentes ao movimento dos capitães e a imediata transferência dos dois primeiros e de David Martelo, respectivamente para os Açores, Madeira e Bragança, unidades distantes das suas residências.
(11) O general Bettencourt Rodrigues tinha sido nomeado governador-geral e comandante-chefe da Guiné em 1973, em substituição do general António de Spínola e estivera recentemente em Lisboa para explicar a difícil situação que se vivia no território.

(Ver em: TT/AMC/Cx 33/Correspondência/Carlos Viana de Lemos/nº 3)


sexta-feira, 25 de novembro de 2016

CHAVES E A REPÚBLICA



Na quarta e última parte da conferência “Chaves e a República” trato especialmente das relações com a Espanha, falando sobre o “perigo espanhol” e o iberismo na atualidade.
Junto um magnífico filme da Cinemateca Portuguesa sobre Vinhais e arredores, a propósito da 1ª incursão monárquica em 1911. Dedico-o a todos os amigos vinhaenses, pode ser que apareçam por ali alguns dos nossos avós (como o filme está protegido tem que se aceder através do link indicado).

Vendo toda a conferência, talvez possa dizer que aproveitei a oportunidade para abordar questões que teria sido muito difícil abordar em outras circunstâncias… Aqui as deixo!

 https://www.youtube.com/watch?v=3LOiYvFHA4w

 



Inúmeros intelectuais, pensadores, simples opinadores e pessoas comuns continuam a reflectir (porventura a inquietar-se) com a questão peninsular. A dinâmica, profundidade, preocupação e continuidade da discussão é a melhor forma de consolidar caminhos. Há uma interrogação fundamental nesta questão dos estados peninsulares, que é esta: a Península é dual? A nossa resposta deverá ser - Sim, a Península é dual, a Península comporta dois Estados.

Outra questão que nos assalta imediatamente: Existe o “perigo espanhol”?

Como devemos responder? Será que, na História portuguesa, faz sentido falar do “perigo espanhol”? Acho que faz todo o sentido. O “perigo espanhol” foi uma condição da dualidade peninsular. Estaríamos hoje a explicar questões completamente diferentes se nunca os portugueses tivessem acreditado nessa latente ameaça, ou se muitos espanhóis nunca tivessem dedicado qualquer pensamento à “inexplicável” dualidade peninsular. Que muitos estudiosos espanhóis, como felizmente existem, se preocupem em abordar um ponto sensível na história dos dois países, faz-nos pensar que o interesse comum, o entendimento mútuo, a relação a dois é, no presente, uma conquista definitiva. As vozes contrárias sobreviventes são um fenómeno comum às conquistas consolidadas.

Mas há ainda outra pergunta latente: A integração há-de fazer-se?


A esta pergunta, talvez possamos responder: Portugal e Espanha estão apenas “condenados” a serem vizinhos. O esforço de entendimento segue paralelo com a capacidade de nos conhecermos. Quanto mais os portugueses se interessarem pelo que se passa em Espanha, e quanto mais os espanhóis se interessarem por Portugal, mais vantagens poderemos tirar da nossa vizinhança. Numa época em que todo o mundo é cada vez mais vizinho, não fará sentido que à proximidade proporcionada pela mundialização, não juntemos as vantagens da proximidade física. Os novos medos que pairam em torno das nossas mútuas relações económicas devem poder constituir mais um episódio de afirmação de ambos, em vez de servirem de pretexto para o regresso de fantasmas que já não fazem sentido.

Então, podemos formular uma nova pergunta: E o Iberismo, sobrevive?


Sobrevive. Reduzido à dimensão a que desde há muito se confinou, não deixa de reaparecer com alguma facilidade. As nossas sociedades, maduras e democráticas, mantêm-no como uma marginalidade. Espanha e Portugal são duas realidades, cada uma com as suas fraquezas e com os seus argumentos. O ponto alto da sua afirmação igual foi a entrada simultânea na então Comunidade Económica Europeia em 1986.

Poderemos hoje dizer que a Europa encerrou a nossa questão? Não, não podemos. Nem podemos permitir que a Europa encerre questões de identidade. Portugal e Espanha partilham uma península dual. São duas realidades vizinhas, mas diferentes; são dois cooperantes, mas afirmam-se como dois pólos. Só nos reconhecemos na nossa diversidade. Sempre teremos questões para resolver.

O que resta então, para privilegiarmos e expandirmos as nossas relações de amizade, cooperação, mútuo reconhecimento e respeito? Temos de conhecer-nos melhor. Temos de olhar-nos nos olhos e aprender a realidade do outro. Temos de partilhar conhecimento, informação, experiências. Devemos quebrar barreiras psicológicas, reduzindo-as ao que é próprio de cada identidade. Temos um longo caminho a percorrer, mas a Europa a que ambos pertencemos permitiu-nos, nestes quase vinte e cinco anos dar passos gigantescos em frente. Saberemos agora dar passos, por nossa conta? Acho que saberemos.

Poderemos então perguntar-nos se vale a pena abordar estas questões que aqui nos reúnem, lembrando uns combates entre defensores da República e conspiradores monárquicos apoiados e incentivados por autoridades espanholas, ocorridos em 1912. Podemos dizer que é uma questão longínqua na história comum e incómoda para ambos os lados. Mas é por isso mesmo que vale a pena falar deste episódio. É uma oportunidade de alargar o nosso conhecimento mútuo. Não podemos, nem conseguiríamos, apagar o episódio da memória portuguesa. Esse facto, tão exagerado em Portugal, deve compreender-se como um incidente nas relações peninsulares, enquanto facto em si. A construção que dele fizemos, a dimensão que lhe atribuímos, faz parte de um processo interno. É um processo de identidade, necessariamente elaborado contra o outro. Só que a liberdade conquistada por ambos os povos, a consolidação da democracia em cada um deles, o caminho que percorremos agora conjuntamente, acompanhados por outros povos europeus, fazem de nós passageiros da mesma rota, caminhantes de outras utopias.

E não me queiram convencer que estão moribundas as utopias europeias! Porque eu acredito nelas.

Muito obrigado a todos. Muito obrigado ao Regimento de Infantaria 19. Muito obrigado à cidade de Chaves.




quinta-feira, 24 de novembro de 2016

CHAVES E A REPÚBLICA





Na terceira parte da conferência “Chaves e a República”, faço um passeio pela História, uma reflexão entre a República e o papel dos historiadores… Nestas conferências há sempre a tentação de aproveitar a ocasião para falar de temas que nos são caros, difíceis de abordar noutras circunstâncias.

  
Parte 3

Litografia de Cândido da Silva (?) alusiva
à revolução republicana de Outubro de 1910. 
Passemos então a outro assunto sobre o qual gostaria de reflectir, no âmbito do centenário da República que aqui também evocamos.

As questões principais do novo regime português são conhecidas. A posição de Portugal no Mundo não se alterou substancialmente com a implantação do regime republicano. O essencial manteve-se, e tinha a ver com a ligação à política da Inglaterra, o equilíbrio das relações com Espanha (que a República agravou) e a defesa do império colonial. Especificamente, como problema novo e inerente ao regime republicano, deve considerar-se a necessidade de ver a nova situação reconhecida pela comunidade internacional.

Internamente são vários os desafios das novas autoridades – a consolidação interna das novas instituições, o apoio do Exército ao regime, a resolução das relações com a Igreja e a difusão do ideal republicano no seio de uma sociedade estruturalmente atrasada.

Não faltavam desafios às novas autoridades republicanas!

Visitemos então esses tempos, como amantes da História, apaixonados pela investigação do tempo dos nossos avós, interessados em colher lições, em compreender atitudes, em reconhecer a memória que nos foi legada.

Não vamos falar de correntes e teorias da História. Quando analisamos uma época histórica nem sempre seguimos teorias. Por vezes seguimos uma ideia, a nossa ideia. Essa ideia pode ligar-se à nossa vivência pessoal. Podemos ser, por exemplo, construtores de pontes, de diálogos, de reconhecimentos, de aproximações. Não desejamos acentuar rupturas – queremos acalmar os ressentimentos, atenuar os mal-entendidos, desvalorizar as mágoas.

As incursões monárquicas destes difíceis anos de 1911 e 1912 puseram em causa as relações de vizinhança entre os dois países ibéricos – Portugal e Espanha. Mas se nos servirmos deste infeliz episódio das nossas relações para chegarmos ao sentido actual da nossa história comum, temos de o reduzir àquilo que ele foi na prática, como acontecimento, não o encarando nem na sua dimensão mítica, nem como sinal de qualquer utopia.

Por outro lado, é sempre necessário retomar o estudo da História, porque só assim ela se mantém viva. Uma comunidade científica e académica atenta regressa sempre a velhos debates, para além, evidentemente, de nos lançar novos desafios. Mas as condições de cada época propiciam a reabertura de discussões e polémicas que pareciam adormecidas. Esta questão que aqui estou lembrando faz parte daquelas pendências recorrentes. Portugal e Espanha merecem que possamos sempre reabrir, nas circunstâncias de cada época, as nossas permanentes pendências.

Partir de um facto, entre muitos outros, é um privilégio do historiador. Na linha da História, ele coloca-se num momento e num lugar e, partindo de ali, observa o passado e pronuncia-se sobre o futuro. Outro privilégio é que ele conhece o futuro. Podemos escolher as incursões monárquicas. No centenário da República que também aqui comemoramos, não deve surpreender-nos esta escolha. Um momento delicado das relações peninsulares, uma questão longamente debatida, uma lembrança porventura embaraçosa. Mas ainda assim, não nos pertencerá a palavra final. Em História, ninguém tem a palavra final. Também por isso, a História não morre.

A verdade é que, depois de tantas teorias que encaixilharam a História, estamos, na presente época, de regresso à narrativa. Aos factos. Às personagens. Neste caso, às incursões monárquicas em Portugal a partir da Galiza em 1911 e 1912 e ao mundo complexo que rodeia os protagonistas.

Devemos confrontar os intervenientes, pesar as suas ideias e actos, analisar os respectivos envolvimentos. Explorar, do ponto de vista histórico, os acontecimentos, as suas razões e os respectivos resultados. Passear pelos campos de batalha (Vinhais e Chaves), pelos teatros de operações (Galiza e Trás-os-Montes) e pelas respectivas retaguardas (Lisboa e Madrid, e mesmo Londres – a propósito, não será Londres um dos eixos fundamentais para deslindar o enredo desses pesados meses?). Este passeio abre-nos caminhos de reconhecimento para múltiplas observações, e para uma apreciação dos factos. A prudência do historiador obriga-o a dar expressão às hesitações que descobre nos actores, às dúbias interpretações que cada um faz do seu próprio envolvimento, às dificuldades que os homens do terreno e mesmo das chancelarias têm em conhecer as linhas gerais da grande política.

Bem vistas as coisas, as incursões são um pretexto para todas as partes. Pode ter sido fabricado ou simplesmente aproveitado. O que está subjacente ao episódio militar, é uma enorme operação de propaganda (numa expressão de uso mais tardio) de ambas as partes. A exaltação do ideal monárquico através da acção, e a glorificação das novas instituições republicanas através da vitória sobre a ameaça à integridade da nação.

Há quem defenda que a História é a história dos vitoriosos. A República (todos os sistemas, todos os regimes, todos nós?) precisava de vitórias. Conquistara com um golpe desarticulado (um golpe de sorte?) o poder. Herdara um país, mas era imperioso criar um estado, desejava edificar um regime, queria consolidar um partido, precisava de um exército. Estado-regime-partido-exército: eis o percurso da República. O Exército só o construiu a partir de Chaves. Um exército só se solidifica com a materialização de “ameaças”. Os combates de Vinhais e de Chaves concretizavam as ameaças – o regresso dos monárquicos e o perigo da intervenção de Espanha. Para o Partido Republicano as circunstâncias caíam-lhe do céu. Podemos nós questionar o aproveitamento que delas fez? Resta-nos apenas analisar os acontecimentos e (só cada um o decidirá) tirar deles paralelismos para outras circunstâncias e para outros cenários, de outros passados ou mesmo de diferentes presentes.

Tenho a ideia que, como historiadores, devemos ser pesquisadores de realidades, analistas de factos, investigadores de provas. Dando a devida importância à dimensão do mito, do processo ideológico, à construção da identidade, às utopias persistentes. Vinhais e Chaves são, para além de factos locais com repercussão internacional, emergências de uma nova mitologia republicana, feita evidentemente de heroísmos, de vibração popular e de afirmação de novos porvires. A habilidade dos republicanos foi a de explorarem os acontecimentos no limite da rotura com Espanha. Não foi a primeira vez, nem a última na história dos dois países vizinhos.

E sempre que as circunstâncias o proporcionam, o problema está de regresso. Cabe pois aqui, perguntarmos se Portugal é um enigma. A verdade é que toda a realidade humana comporta um enigma. A constituição, sobrevivência, afirmação e identidade das nações, como hoje as conhecemos, sempre nos provocarão novas interrogações. A História não tem outro fim senão explicar os sucessivos enigmas das construções humanas. A questão nacional é uma permanente preocupação intelectual. Poucos pensadores escapam a esse desafio. Enunciar os portugueses que foram atraídos para este assunto seria enunciar uma imensa galeria de todos os que edificaram um pilar importante da identidade portuguesa.

Nessa medida, Portugal, como muitas outras realidades humanas, foi e continua sendo, um enigma. Continuar a estudar os acontecimentos que aqui nos reúnem é um contributo para a descoberta das chaves que o explicam.




terça-feira, 22 de novembro de 2016

CHAVES E A REPÚBLICA


Na segunda parte da conferência "Chaves e a República" dou destaque a uma memória do capitão Maia Magalhães sobre os acontecimentos e o ambiente em torno da implantação da República e da reação das populações rurais.
Esta memória encontra-se no Arquivo Histórico Militar e veio parar-me às mãos quando preparava a conferência. É um exemplo do muito que se esconde nos arquivos à espera de ser descoberto.
Na conferência fiz um desafio ao presidente da Câmara para a sua publicação, mas como quase sempre, caiu em saco roto.
Maia de Magalhães foi para Chaves como chefe de estado-maior do sector de defesa entre os rios Mente e Cávado, criado para fazer face à ameaça das incursões.
(Nota: os seus apontamentos trouxeram-me à memórias as ações da dinamização cultural, a seguir ao 25 de Abril!).



Parte 2


Mas não quero deixar os acontecimentos de Chaves, sem referir algumas interessantíssimas passagens das memórias do capitão Maia Magalhães (que estão no Arquivo Histórico Militar e que julgo inéditas), memórias que escreveu a propósito de vários reconhecimentos nos arredores de Chaves, antes da entrada dos monárquicos.

Alguns defensores de Chaves, num pequeno
filme da Cinemateca Portuguesa, 1912, em
http://www.cinept.ubi.pt/pt/filme/8731
O primeiro apontamento diz o seguinte:

“Chegando a Chaves sem conhecimento algum do meio, nem da região, e tendo simplesmente uma indicação muito geral sobre as ocorrências que traziam toda a gente alarmada, comecei por reunir todos os elementos que julguei indispensáveis para formar a minha opinião (…)

Eu nunca me convenci, confesso, que os conspiradores da Galiza, apesar de saber que os havia realmente nas povoações espanholas próximas da raia, se aventurassem a entrar em Portugal, principalmente depois de descobertos os seus manejos; mas se realmente, numa alucinação de espírito, e para justificarem a imensidade de dinheiro que com eles gastavam outros monárquicos mais comodistas, chegassem a entrar, nunca pelo meu cérebro passou a ideia de que pudessem alcançar o mais pequeno sucesso sobre tropas do Exército Português ou mesmo sobre os grupos civis absolutamente dedicados à causa da Pátria e da República.

Mas se não entravam e não podiam alcançar vitórias, alguma coisa conseguiam (e nisso foram sempre poderosamente auxiliados pelos que dentro do País não se puderam conformar com o novo estado de coisas por serem ou feridos nos seus interesses ou despeitados (…) – é trazerem o País sobressaltado, criando uma atmosfera de dúvida terrível sobre a possibilidade de guerra civil, promovendo a ida de numerosos contingentes para a fronteira (…) e aumento fabuloso das despesas”.

E num segundo apontamento refere o capitão as suas deambulações pelas aldeias:

“As informações que a mim me competia directamente colher eram unicamente as que diziam respeito à zona onde teria de operar. Tinha de fazer largos e completos reconhecimentos do terreno que eu desconhecia por completo. Só o estudo consciencioso e detalhado do terreno me permitia fazer uma ideia da forma como poderia ter de empregar as forças. (…)

Eu porém não me podia limitar a ver terreno (…) a minha missão tinha de ir mais além (…) Tinha de fazer também o meu reconhecimento às aldeias, procurando penetrar intimamente o espírito das populações e perceber-lhe a sua atitude em face das circunstâncias, pois precisava de saber (…) se as populações coadjuvariam as nossas forças, se se conservariam indiferentes, ou se, pelo contrário, nos seriam hostis.

Aí nessas aldeias aproveitava sempre a ocasião para fazer a propaganda das novas Instituições, em conversas com os habitantes, dizendo-lhes a verdadeira significação da mudança de regime, e elucidando sobre as imensas vantagens da República principalmente para as classes pobres, que foram sempre as mais desprotegidas pela Monarquia.

Esta propaganda, que eu reputo hoje mais do que nunca, em face da infamíssima campanha que os reaccionários têm feito contra a República, absolutamente necessária, era uma das mais importantes medidas de defesa que devíamos empregar, e foi por isso que eu e alguns camaradas meus andámos por nossa iniciativa de aldeia em aldeia, abrindo quanto possível os olhos aqueles povos, que recolhidos à sua ignorância, nada mais sabiam do que as formidáveis patranhas que os mal intencionados inimigos da República lhes faziam acreditar.

É fantástico, inacreditável a série de disparates e de infâmias contra a República que esses cavalheiros, que se julgavam os donos desses humildes povos, se lembravam de inventar para desacreditar a República e para eles não perderem o seu antigo prestígio.

A Lei da Separação, que eles deturparam a seu modo, deu-lhes largo campo para essa campanha, e com o que diziam de tal forma indispunham essas gentes contra as Instituições, que até consideravam um pecado pronunciar a palavra República. Era vulgaríssimo ouvir nessas aldeias, principalmente as mulheres, porque os homens poucos a princípio apareciam e pouco falavam, que a República queria tirar-lhes a religião, mandava incendiar ou arrasar as igrejas, quebrava os santos, roubavam os objectos preciosos que nelas havia, que os republicanos eram uns hereges, uns malfeitores que matavam e roubavam toda a gente e que a República era a causa de todos os males que lhes aconteciam.

Numa das aldeias, quando nós aparecemos, umas mulherzinhas pediam pelo amor de Deus que não levássemos a coroa da Nossa Senhora!

Ficavam muito espantados, e a princípio não acreditavam, quando lhes dizíamos e provávamos a falsidade de tudo isso e lhe dávamos a verdadeira interpretação das leis da República”.

O capitão Maia de Magalhães continua ainda com as suas memórias, oferecendo-nos um quadro vivo e original da sua missão. Não vou contudo insistir na sua leitura. Mas deixo um desafio a Chaves, porventura ao sr. Presidente da Câmara, de podermos publicar estas memórias de um capitão que, embora desconhecedor destas terras, ou talvez por isso, nos oferece delas e das suas gentes uma lembrança viva e digna de ser lembrada.


segunda-feira, 21 de novembro de 2016

CHAVES E A REPÚBLICA



Como disse no apontamento introdutório, o texto que se segue, em quatro partes, é uma conferência que fiz em Chaves no dia 26 de Março de 2010, dia do Regimento de Infantaria 19, a convite do seu comandante, coronel Barbosa.

Nesta primeira parte, abordo a questão principal, que são as incursões monárquicas e o seu significado.



Foi ali, na Biblioteca Pública Municipal de Chaves,
que fiz a conferência.
Parte 1

Para a I República e os republicanos, Chaves tornou-se um nome simbólico. Depois do difícil parto da implantação da República, o novo regime viveu períodos complicados, o primeiro dos quais ocorreu aqui, na fronteira Norte, com as chamadas incursões monárquicas.

Como sabemos, poucos monárquicos defenderam o seu regime, em 1910. Paiva Couceiro, oficial do Exército, e alguns outros seus camaradas, a quem se juntaram alguns civis, foram os únicos que verdadeiramente se opuseram ao movimento republicano. Não tendo obtido êxito nas suas tentativas imediatas, apenas lhe restou o exílio em Espanha. Aí, com a complacência das respectivas autoridades, criaram e ampliaram um movimento de resistência, com o objectivo de restaurar a Monarquia em Portugal.

Recebidos e auxiliados no país vizinho, os conspiradores monárquicos movimentaram-se com bastante facilidade nas regiões fronteiriças espanholas. Passado um ano da implantação da República, acharam-se com força para a primeira incursão em território português, e entraram em Vinhais, onde hastearam a bandeira monárquica no dia 5 de Outubro de 1911. Este acontecimento causou um primeiro frémito republicano. O perigo monárquico, ampliado até extremos, tornou-se uma das principais ameaças à República e ao regime recentemente implantado e as incursões monárquicas através da fronteira espanhola do Norte, a mais credível possibilidade de os monárquicos perturbarem o regime republicano.

Vencida, com relativa facilidade, a tentativa monárquica de Vinhais, a verdade é que a República redobrou de atenções, em relação às hostes couceiristas que de novo se refugiaram em terras de Espanha.

Estas forças monárquicas, organizadas em torno de Paiva Couceiro e acolhidas, apoiadas, armadas e municiadas, de forma ostensiva, mas não oficial, por algumas autoridades espanholas sob o chapéu do rei Afonso XIII, voltariam ao ataque a território português, tentando entrar em Chaves, em Julho de 1912.

A guarnição militar de Chaves era nesta altura constituída pelo Regimento de Infantaria 19 (que aqui se mantém), comandado pelo tenente-coronel Augusto César Ribeiro de Carvalho, pelo Regimento de Cavalaria 6, forças de Artilharia 4 e serviços administrativos de apoio.

A sede da 6ª Divisão do Exército era em Vila Real, cujo comandante, coronel Francisco Gorjão, avançou para Chaves em 3 de Julho, acompanhado pelo seu chefe de estado-maior, tenente-coronel Alfredo May. Em face da ameaça, tinha-se constituído um sector de defesa entre os rios Mente e Cávado, cujos comandante e chefe de estado-maior, respectivamente tenente-coronel Custódio Alberto de Oliveira e capitão Maia Magalhães, também estavam em Chaves.

As medidas de contenção foram tomadas. Os couceiristas apareceram em território português a 7 de Julho de 1912. Houve pequenas escaramuças e um combate em Vila Verde, vindo a acção militar principal a ocorrer no dia seguinte, quando os conspiradores monárquicos tentaram entrar em Chaves e foram impedidos pelos defensores da vila (ficariam conhecidos como “Defensores de Chaves” todos os que participaram nos combates e que enfrentaram o ataque). Morreram 15 pessoas, dois defensores e 13 monárquicos e ficaram feridas mais 12 pessoas, sendo seis militares, cinco conspiradores e um civil.

Os combates não foram prolongados, não houve um número exagerado de vítimas, mas a defesa de Chaves transformou-se numa enorme bandeira da República, habilmente aproveitada para uma primeira reconciliação dos republicanos com o Exército.

Não deixa de ser interessante a referência a algumas passagens do relatório do coronel comandante da 6ª Divisão do Exército acerca dos acontecimentos.

Diz assim: “Evitou-se que Chaves caísse em poder dos rebeldes, o que seria o começo de uma guerra horrorosa, atiçada pela questão religiosa que continua latente, e que seria de tristes consequências para a nossa Pátria. Foram batidos e obrigados a repatriar-se, desaparecendo a ameaça, já tão prolongada, de incursões, que exigia despesas extraordinárias, da parte da República, e originava uma perturbação interna, que nos não deixava tratar a sério dos problemas importantes da nossa administração”.

E continuava: “A interferência do elemento civil, apresentando-se entusiasticamente em defesa da República, desfez uma lenda de que as populações do Norte acolheriam Paiva Couceiro como um restaurador ansiosamente esperado”.

E ainda mais adiante, nas propostas de recompensas, adiantava o Coronel Gorjão: “Chaves merece bem uma recompensa pela forma heróica como a sua população se portou e pelos estragos que algumas das suas casas sofreram com o bombardeamento dos rebeldes. Essa recompensa parece-me que deve ser primeiro que tudo a sua ligação acelerada com o resto do país, por meio da prolongação do caminho-de-ferro do Vidago (…). A conclusão das estradas de Chaves a Vinhais, de Vidago a Boticas e de Chaves a Braga, que parece impossível estarem por concluir há longos anos”.

Como se vê, não se devem perder as ocasiões, mas não julgo que estas propostas tenham tido um grande acolhimento por parte das autoridades… É que, a seguir a Chaves, a República tinha outras grandes preocupações pela frente.




domingo, 20 de novembro de 2016

AS INCURSÕES MONÁRQUICAS LEVARAM-ME A CHAVES...



Em 2010 fui convidado pelo comandante do Regimento de Infantaria 19, de Chaves, para fazer uma conferência sobre as incursões monárquicas, no dia da unidade, a 26 de Março.
Estranhei o convite, uma vez que eu não conhecia o coronel Barbosa, mas ainda assim aceitei.
Encontrei agora um apontamento que escrevi na época, já depois da conferência, uma espécie de nota final. A conferência, que nunca viu a luz do dia, vou publicá-la aqui em várias partes, o apontamento segue agora:


Publicidade às comemorações
do Regimento de Infantaria 19
“A conferência

Passados quase cem anos, cheguei a Chaves pela auto-estrada.Vou falar, numa conferência pública, das incursões monárquicas de 1912.

Depois da refrega, o coronel recomendou no seu relatório que se terminasse a estrada de Vidago a Chaves, pois parecia impossível como há tanto tempo estava por concluir! Ninguém o ouviu.

Passado o susto, ficaram os heróis (se ao menos algum tivesse morrido!). Mas não, a República teve que contentar-se com heróis vivos. Nesse caso, melhor foi que fossem incógnitos, todo o povo, toda a gente, todos os flavienses – os defensores de Chaves! Ainda hoje existem!

Quando fiquei só, em frente de uma sala cheia, eu vi-os sentados naquelas cadeiras! Eles orgulham-se de terem defendido a sua terra. Fizeram-se todos republicanos! Porque uma coisa é lutar por ideias, outra é querer impô-las de armas na mão! Em Chaves, a monarquia é uma má lembrança.

A sala cheia da biblioteca pública confirmou-o! Eu falei da República e de como ela renasceu em Chaves. De como os republicanos precisavam do exército para se construir, de como Chaves se transformou no símbolo republicano de afirmação dos seus ideais. Os aplausos que recolhi disseram-me como lhes toquei na alma. Chaves fez a República e a República fez Chaves.

Mas a verdade é que só a Europa, de que também falei, é que construiu a auto-estrada que me levou de Lisboa até lá.

Também falei de Espanha. Na resposta, o autarca da cidade fez-me saber que Chaves e Verin vão construir uma cidade transfronteiriça. Sem medos, mas afirmando a diferença.

Ainda bem que passaram quase cem anos!”


A conferência irá em quatro partes…


sexta-feira, 18 de novembro de 2016

UM SOLDADO RAZOÁVEL


Quando deixei a vida ativa e passei à situação de reforma, os meus amigos quiseram fazer-me uma homenagem pública. É claro que os dissuadi, mas em contrapartida organizaram um jantar na A25A ( 21 de Março de 2007) onde estiveram presentes dezenas de amigos, encontro que recordo com muita emoção.
Na altura li um texto que deveria chamar-se “Um soldado razoável”, mas que foi publicado no Referencial, boletim da A25A, como “O soldado é um persuasor”, o que não me parece mal.
Foram as seguintes as minhas palavras:


 
Na A25A no dia 21 de março de 2007
“Queridos amigos e meus camaradas

As palavras que escolhi para vos dizer não exprimem os meus sentimentos de gratidão. Falta-me habilidade literária para traduzir o que me vai na alma. Peço-vos que as aceitem como a forma mais genuína que consegui. Todos vós sois testemunhas do meu reconhecimento e credores do meu afecto.
Permitam-me então que vos apresente uma receita para fazer um soldado razoável.
Houve um tempo em que o Exército me deu a incumbência de fabricar soldados. Eu sempre tive a ideia, moldada pelas circunstâncias, de que era mais eficaz fazer de todos, soldados razoáveis, do que fazer meia dúzia de bons soldados e uma multidão de incapazes. Talvez possa hoje ter a ideia de que procurei reproduzir-me, nos meus instruendos.
Pois qual é a receita para fazer um soldado razoável?
Pega-se num homem em bruto. Vem de uma zona rural, traz linhas angulosas de pensamento, mentalidade, hábitos e horizontes. A primeira tarefa é... afeiçoá-lo.
Muitos destes vestígios permanecerão para sempre, mas não há outra alternativa – esse lastro só deve reaparecer, eventualmente, em situações limite.
Porém, e ponto importante, tudo aquilo que não prejudicar a razoável solução, pode continuar a fazer parte do fundo do nosso homem. Não se pretende inventar nenhum homem novo.
A certa altura, há que mandar o homem para a guerra, destino do verdadeiro soldado... Foi isso que pensou o nosso ido regime, quando o nosso ditador caminhava para lá dos seus 70 anos. Pois que melhor escola se não a guerra nas colónias? E foi assim que o soldado razoável se viu, como tantos de vós, nessa aventura de vida a muitos milhares de quilómetros da sua terra. Procurou sempre que os homens que lhe meteram nas mãos se comportassem como militares razoáveis -  sensatos, dignos, cumpridores.
Mas quando a guerra se prolongou para lá do razoável, esses soldados, moldados no bom senso da vida e das opiniões, acharam-se perante o dilema de obedecerem à sua consciência ou aos ditames do seu juramento. Foi um momento complicado, mas de breve hesitação. Tinham aprendido comigo que há sempre uma hora em que o homem decide sozinho. Os meus soldados, aqueles que eu formei (aqueles que todos vocês formaram) responderam firmemente à chamada que lhes fizemos. Optaram pelo cheiro da liberdade. Desejaram secretamente o triunfo da liberdade. Lutaram pela vitória da liberdade.
E no dia que se escolheu, todos agiram firmemente. Há dias em que o soldado razoável, age como um bom soldado. E os dias de grandes causas, são os melhores para testar as suas capacidades.
Nas palestras de sexta-feira era comum eu dizer a todos – não te imponhas pela espingarda. O soldado é um persuasor. Deve explicar-se tanto quanto possível e, sobretudo, espera que quem manda explique os actos que lhe impõe.
Um dia, ele próprio descobre que a liberdade pertence ao povo, e que a si, só pertence defendê-la e não oferecê-la. Nem invocá-la em seu favor ou exigir-lhe recompensa. A liberdade é a marca da sua conquista e da sua servidão.
Como soldado, aprendi, e assumi, os limites da minha vida. Procurei convencer-me do exacto papel que me era destinado – optei por continuar soldado, cumprindo deveres que embora novos, não deixavam de ser a continuação do percurso de sempre.
Foi assim que cheguei ao Arquivo Histórico Militar.  
Preferi continuar soldado às alternativas que me ofereceram. Porquê? Nem eu sei explicar. Porque era o meu ambiente e porque era aí que estavam os meus camaradas. Porque não tinha aprendido a viver em outro lugar.
E querem saber o que aconteceu? Tive oportunidade não apenas de contactar com camaradas do meu tempo, estes para quem eu agora falo, mas também com gente mais nova e sobretudo, gente muito mais antiga. Podem crer que conheci centenas de camaradas, e em muitos encontrei afinidades, especialmente quando verifiquei que também eles tinham sido soldados razoáveis.
Eles jaziam ali, em prateleiras infindas, esperando porventura que algum camarada do futuro compreendesse como e porquê eles tinham cumprido o seu dever, nas circunstâncias que a sua vida e o seu tempo lhes proporcionaram. De certa forma, constatei aquilo que era minha convicção - eles constituíam o suporte do nosso tempo e da nossa atitude, da compreensão dos nossos dias e das nossas raízes, da nossa tradição e da nossa capacidade de entendermos o presente. Aprendi imenso com eles.
Essa aprendizagem ditou-me um dever, que me impus – é necessário preservar a memória que todas essas gerações nos podem transmitir. O esforço de salvaguarda deve ser assumido por todos os responsáveis. Só quando compreendermos que não estamos sós, porque inúmeras gerações sustentam as nossas convicções e os nossos princípios, que de certa forma vigiam as nossas opções e nos apontam o caminho, é que poderemos tirar da vida todas as lições que devem moldar o nosso tempo.   
Estou certo que todos esses nossos camaradas continuam disponíveis para nos darem lições de vida. Experimentem conhecê-los e talvez consigam dar solução a muitas das dúvidas que hoje ainda vos assaltam. São lições da História, que eu procuro não desprezar.
Foi gratificante verificar que, apesar de tudo, o Exército tratou de preservar memórias de si e dos seus. Claro que há imensas clareiras, mas o essencial desse imenso património existe e espera pelo dia da descoberta.
Contudo, quando me achei naquele lugar, não me bastou, como soldado razoável, cópia que era dos soldados saídos das minhas mãos, fazer o óbvio – continuar a recolher em rotinas anteriores, a papelada que ia chegando. Pretendi tornar-me garante da memória de uma geração especial, da geração que fez transitar Portugal da antiguidade para a vida contemporânea, do mundo obscuro para o mundo moderno – a nossa geração, esta que aqui está representada.
O meu trabalho no Arquivo Histórico Militar destinou-se, também, a salvaguardar a memória da nossa geração e daquilo que foi o nosso contributo (de que nos orgulhamos) para a História do nosso país.
Hoje há uma certeza que eu tenho e vos transmito: está preservada a memória desta geração de transição. Está preservada em níveis que muito ultrapassam os níveis de qualquer outra geração. A guerra colonial, o 25 de Abril, a transição democrática terão um peso não apenas como factos decisivos que foram, mas também no testemunho disponível que deixam no Arquivo Histórico Militar. Isso ninguém, no futuro, vai poder esconder. Essa foi uma das minhas orientações essenciais, na convicção de cumprir também a minha responsabilidade perante o Exército. Pelo que fiz nesse sentido acho que a vossa aprovação é merecida. Quanto ao resto que me quiseram e estão a transmitir, vou considerá-lo como um incentivo e como a certeza de grandes amizades de que muito me orgulho.

Podem crer que é, porque sempre foi, um soldado razoável que vos diz, do fundo do coração – muito obrigado”.


segunda-feira, 14 de novembro de 2016

INDEPENDÊNCIAS, ALGUMAS QUESTÕES DO PERÍODO DE TRANSIÇÃO



A 2ª parte do texto sobre as independências aborda as perplexidades e as certezas dos membros do MFA presentes nos territórios coloniais depois do 25 de Abril, em especial em Moçambique, onde integrei o Gabinete do MFA junto do comandante-chefe.


Parte 2

O Acordo de Lusaca foi negociado entre
Portugal e a FRELIMO, visando o período
 de transição e as condições de transferência
da soberania.
Perplexidades
Eis então as suas perplexidades:
Primeiro, o Programa do MFA.
O documento de Cascais, aprovado em 5 de Março de 1974 e do qual tínhamos conhecimento, dizia o seguinte:
“Uma solução política que salvaguarde a honra e dignidade nacionais, bem como todos os interesses legítimos de portugueses instalados em África, mas que tenha em conta a realidade incontroversa e irreversível da funda aspiração dos povos africanos a se governarem por si próprios - o que implica necessariamente fórmulas políticas, jurídicas e diplomáticas extremamente flexíveis e dinâmicas. Esta situação tem de ser encarada com realismo e coragem, pois pensamos que ela corresponde não só aos verdadeiros interesses do Povo Português como ao seu autêntico destino histórico e aos seus mais altos ideais de justiça e de paz”.

Mas o Programa do MFA diminuía este alcance, ao excluir a alínea de que atrás falei.

Segundo, a declaração da Junta de Salvação Nacional.
Logo no dia 26 de Abril, a JSN, faz uma proclamação através do general António de Spínola, seu presidente, dizendo:

“Em obediência ao mandato que acaba de lhe ser confiado pelas Forças Armadas, após o triunfo do Movimento em boa hora levado a cabo … a Junta de Salvação Nacional (…) assume perante o mesmo o compromisso de:
- Garantir a sobrevivência da Nação, como Pátria Soberana no seu todo pluricontinental;
(…)

Terceiro, os discursos de Costa Gomes na sua visita a Angola e Moçambique.
Disse o general Costa Gomes, em Nampula, logo nos primeiros dias de Maio:
“…pode parecer (…) que exigimos a esses ‘partidos armados’ que aceitem o estatuto de vencidos, e que exigimos a eles uma atitude diferente da nossa.
É neste ponto que conviria definir claramente que não lhe pedimos uma rendição militar mas sim que esperamos deles uma atitude sincera idêntica à nossa.
A disposição fraterna de colocar as armas nas arrecadações para criar um clima de paz e tranquilidade que permita ao martirizado povo de Moçambique discutir livremente o seu destino e decidir nas urnas em eleições autênticas o esquema político em que deseja viver.
(…)
É infelizmente de considerar a hipótese, que todos lamentaríamos, de que tais partidos não acreditem na nossa límpida sinceridade ou tenham compromissos a cumprir para com terceiros e se disponham a continuar a luta.
(…)
Nesta hipótese a nossa posição de militares será simples de definir.
Lutaremos com uma missão mais bela e enobrecida; tornar-se-ia meridianamente claro que continuaríamos em armas a defender um povo irmão agredido no sagrado direito de decidir em paz os seus próprios destinos.
…”.

Estas posições, como causa das perplexidades dos capitães, conduziram a algumas dúvidas, que podiam sobrepor-se às certezas anteriores.

Certezas
Vejamos, pois.
Os capitães tinham algumas convicções muito claras, e a questão da guerra e da sua solução urgente não merecia qualquer dúvida.
Mas eles tinham outras certezas.
Em primeiro lugar, as posições dos movimentos de libertação.
Por exemplo, logo a seguir ao 25 de Abril, a Declaração do Comité Executivo da FRELIMO sobre os “Acontecimentos em Portugal” dizia, entre outros pontos:

“Cabe ao governo português tirar completamente as lições das experiências passadas e compreender bem que só pelo reconhecimento do direito do povo moçambicano dirigido pela FRELIMO, seu autêntico e legítimo representante, à independência, se poderá pôr termo à guerra colonial. Qualquer tentativa de iludir o problema real só terá como consequência causar novos e inúteis sacrifícios. A via para a solução do problema é clara: reconhecer o direito do povo moçambicano à independência”.

Outra certeza para os capitães resultava da posição dos soldados portugueses.
Desde muito cedo, os militares portugueses manifestaram a sua inquietação perante o rumo que os acontecimentos tomavam e a falta de iniciativa das autoridades portuguesas para darem início às conversações com os movimentos de libertação.
Entre outros, dou aqui um exemplo das justificações apresentadas num dos documentos coletivos assinados por mais de uma centena de militares da guarnição de Tete e dirigido ao “Excelentíssimo Senhor Presidente do Conselho de Ministros do Governo Provisório”:

“Conscientes de que somos, neste momento de grande elevação nacional, intérpretes dos justos anseios do povo português, do qual nos consideramos parte inalienável, vimos expor a V.Exª. Senhor Presidente, o seguinte:
1.     Se com alegria acompanhamos os acontecimentos que em Portugal puseram fim à ditadura fascista opressora dos legítimos interesses e direitos do povo português, não podemos, por outro lado, deixar de manifestar a nossa grande preocupação pelos factos que continuamos a viver, dia a dia mais graves, dia a dia mais incoerentes com o novo espírito que se respira na Nação Portuguesa.
2.     Continuando a matar e a morrer numa guerra injusta, provocadora de irrecuperáveis suicídios morais e humanos; reconhecendo que um povo só é livre quando não oprime outros povos; verificando, pelo conhecimento concreto da realidade, ser a Frelimo o único e indiscutível representante do Povo de Moçambique:
Pugnamos:
- PELO IMEDIATO RECONHECIMENTO DO DIREITO À INDEPENDÊNCIA DO POVO MOÇAMBICANO.
- PELO FIM DA GUERRA.”

Terceiro, os capitães tinham também a certeza sobre a realidade da guerra.
O evoluir da guerra, dessa guerra que já não fazia sentido, acrescentava as preocupações e as perplexidades dos capitães.
Por exemplo, uma nota-circular do QG da RMM, referindo-se ao balanço do mês de Maio, dizia o seguinte:

“1. Tem-se constatado que a atividade In [Inimigo] a partir de 25ABR74 sofreu um incremento considerável, resultado de determinações insistentemente difundidas pelos órgãos superiores da FRELIMO, muito especialmente após aquela data.
Resumidamente a situação pode esquematizar-se:

TOTAL DAS ACÇÕES IN
1974
Em relação a Janeiro
Mês


JANEIRO
315
---
FEVEREIRO
293
- 7%
MARÇO
558
+ 14%
ABRIL
443
+ 41%
MAIO
462
+ 47%

2.…”

Em suma, a posição dos militares do MFA não foi fácil. Mas quase todos entendiam que a guerra devia acabar, e que o cessar-fogo só seria possível com a abertura de negociações com os movimentos de libertação. Foi nesse objetivo que muito se empenharam até à sua concretização, em prazos muito curtos. Foi isso o que fizemos e foi isso o que quisemos fazer.

Final
Para terminar, gostaria de deixar-vos um conjunto de interrogações que continuam a merecer várias respostas e que nos alertam para assuntos a que é necessário regressar.
Aqui vão elas:
Será que o MFA é uma estratégia das Forças Armadas para se libertarem da guerra, que sentiam perdida, ou o MFA é uma entidade autónoma em relação às Forças Armadas, com um fim contrário ao pensamento destas?
Porque é que o Programa do MFA, que deu consistência política à intervenção dos militares em 25 de Abril, mal desenhou uma solução para a guerra, quando era essa a principal questão a resolver pelo movimento dos capitães, depois da tomada do poder?
Como é que os núcleos do MFA nas colónias em guerra conciliaram o movimento de democracia urgente, com a continuação das operações militares?
Porque é que a situação militar em cada território, considerada em grau de gravidade militar (por esta ordem – Guiné, Moçambique, Angola), parece adaptar-se à consistência das posições do MFA e do seu papel no primeiro período do pós-25 de Abril?
Porque é que, em certos meios (que são ainda hoje inusitadamente representativos), continua muito justificada a responsabilidade do desencadeamento pelo regime anterior de uma guerra em três frentes, abrangendo os territórios de Angola, Guiné e Moçambique, e continuam os capitães acusados de interferirem no processo e darem origem aos dramas do período de transferência de soberania?
Aliás, porque é que continuamos a chamar “Descolonização” apenas ao período pós-25 de Abril, quando o processo, e respetivas responsabilidades, se estendem do pós-II Guerra Mundial até às independências?
Porque é que subsistiram e continuam ainda a emergir dúvidas sobre a responsabilidade primeira das situações dramáticas dos processos de transferência de soberania, quando ao MFA não restou mais que dar cumprimento às resoluções da ONU e ao pensamento comum da comunidade internacional, num prazo muito curto e em circunstâncias muito complexas?
Existem outras perguntas que me inquietam, mas acho que estas são suficientes para terminar a minha apresentação neste colóquio.
Por fim, acho que devemos congratular-nos por iniciativas como esta, que contribuem para o conhecimento deste tempo importante para todos nós.