segunda-feira, 31 de outubro de 2016

O BATALHÃO DE INFANTARIA 10 NA GRANDE GUERRA


Esta parte do texto sobre o RI 10 na Grande Guerra respeita à sua viagem desde Lisboa até às linhas da frente, na Flandres.


Parte 2:

Sigamos pois o Bohemien, que já vai no alto mar.
Na Biscaia temos temporal. O rude serrano, que nunca havia sentido o desusado baloiço produzido pela borrasca, que não sabia o que era um mar de procela, assusta-se, mas os seus oficiais estavam ali para lhes gritar, como os capitães da maruja que partia às descobertas: não há perigo, é o mar que treme de nós!
Finalmente, a 26 de Abril, a viagem termina em Brest e às 18 horas já o BI 10 está na gare a fim de partir de comboio para a viagem que os seus camaradas antes chegados e outros que virão a seguir farão através do Norte de França em direção à Flandres, onde uma pequena parcela de alguns quilómetros da longa frente (mais de 700 quilómetros, entre o mar e a fronteira suíça) estava destinada aos portugueses.
A descrição do major António José Teixeira desta viagem através dos campos da Bretanha e Normandia está repleta de lembranças e notas históricas sobre cada região atravessada nessa primeira viagem, ao longo de mais de 700 quilómetros de Brest a Saint Omer, nas proximidades de Calais. Os soldados portugueses olham, pasmados, as paisagens e as cidades que aparecem e desaparecem do seu horizonte, merecendo menção Rennes, Mayenne, Alençon, Evreux, Rouen, Amiens, Abbeville, Étaples, Boulogne-sur-mer, Calais e Saint-Omer. A partir daqui a coluna militar segue a pé, passando por Wizernes e chegando aos seus destinos no dia 28 de Abril, em Becourt, onde monta o primeiro acantonamento.
Só a 28 de Junho, dois meses depois, o Batalhão segue para Ecques, aproximando-se da frente. Neste período, assim como nos dois meses seguintes, até ao início de Setembro, os homens recebem instrução em várias escolas (tiro, armamento, gases de combate, esgrima, trincheiras, metralhadoras, patrulhas, observação, saúde, comunicações, etc.). O dia 28 de Junho fica também tristemente assinalado pela ocorrência das primeiras duas mortes, por acidente, de soldados do Batalhão (1).
Soa, enfim, a hora de o Batalhão avançar para a frente, e em 11 de Setembro deslocam-se a 1ª e 2ª Companhia para Essars, a 3ª e 4ª, e bem assim o E.M. e Menor do Batalhão, para Le Touret. (…) a viagem fez-se em camiões guiados por soldados ingleses e pela estrada de Bethune.
Em 14, depois de alguns reconhecimentos feitos pelos oficiais, o Batalhão ocupou, sem responsabilidades de comando, os subsectores de Festubert e Givanchi, no sector de La Bassée.
Os ingleses receberam o português em festa, e a boa vontade dos nossos em bem cumprir e o desejo de aprender admirava notavelmente o oficial inglês, em especial os comandos superiores, de cuja boca se ouvia repetidas vezes ‘que o soldado português era excelente’. Ali iniciaram a aprendizagem nos serviços de patrulha, ronda, snipers, observadores, reparadores de trincheiras, etc. etc., adestrando-se em todos os serviços, com inegável perícia, até ao dia 17 de Setembro de 1917.
Logo a 23 de Setembro o Batalhão parte para Paradis-Nort e depois para Sailly-sur-la Lys. O autor do nosso relato vai dando conta das paisagens, das mudanças, do estado das culturas, mas também do movimento de colunas militares e dos sentimentos que invadem os soldados nesta marcha.
Ao chegar a Sailly, verifica que “os aeroplanos no seu rom-rom monótono, na sua exploração quotidiana, dirigem-se para a frente numa correria vertiginosa, ora adotando a formação em cunha ou escalão, ora o dispositivo em losango ou xadrez”.
Mais adiante, o espetáculo aéreo, que se vai tornando importante à medida que a guerra prossegue, impressiona todos os que nunca poderiam imaginar os progressos desta nova dimensão do teatro de operações:
Lá surge no horizonte uma esquadrilha inimiga, voando a bastante altura… as baterias antiaéreas fazem-lhe um tiro de barragem intenso e perseguem-na… distrai-nos o rebentamento de dezenas de granadas ao deixarem na atmosfera os seus novelos de fumo branco, que se evolam com as nossas mil conjeturas a propósito do aspeto interessante que a guerra a cada momento nos apresenta!
Tudo impressiona os soldados transmontanos, transplantados da sua pacata terra natal para este frenesim de matança, que contemplam espantados. Não podem nesta hora refletir sobre as razões que os levaram para tão longe, nem estão em condições de julgar o que motivou tão colossal concentração bélica. Sabem apenas que estão prestes a tomar parte nesta imensa batalha, onde terão em risco permanente a sua vida.
O relato dá-nos ideia do quadro que se desenrola à frente de todo o Batalhão:
Intermináveis comboios de camiões fazem encostar, à direita, os nossos soldados que vão marchando aprumados e altivos… agora, passam ajoujados de tropas, para logo a seguir surgirem carregados de víveres ou material!
As auto-ambulâncias também não cessam no seu vaivém, na sua missão dolorosa de conduzir feridos dos postos de socorros para os hospitais…
A artilharia entretanto troveja, ali bem perto de nós… as granadas, sibilando duma forma enervante cortam os ares e… lá vão! Duelo terrível, formidável o que se ouve!... Monstros de ferro partem à procura de mais algumas vítimas.
É a grande carnificina!
O inimigo riposta e o interminável duelo continua…


……


[1] Eduardo Alves, de Lamas de Orelhão e Francisco Augusto de Sobreiró, Vinhais.

domingo, 30 de outubro de 2016

O BATALHÃO DE INFANTARIA 10 NA GRANDE GUERRA


Este texto foi publicado na Revista CEPIHS (Centro de Estudos e Promoção da Investigação Histórica e Social Trás-os-Montes e Alto Douro), nº 4, Moncorvo, 2014, pp. 67-92.
Para publicação neste blogue e para melhor apresentação vai ser dividido em cinco partes que publicarei separadamente.

Capa do relatório sobre o BI 10
existente no AHM
 Parte 1:

Nos primeiros dias de Abril de 1917 foi recebida pelo Regimento de Infantaria 10 de Bragança, a ordem de mobilização de um Batalhão.
A 19, estava o Batalhão pronto para partir. “Grande foi a atividade desenvolvida nestes dias; mal se dormia com trabalhos que era necessário ultimar e que não podiam ser adiados”.
O comandante interino do Regimento, major Carlos António Leitão Bandeira (1), mandou publicar na Ordem de Serviço desse dia o seguinte despacho dirigido aos militares que partiam:
Neste momento solene que, em cumprimento do vosso dever ides partir para França, lutar pela defesa do Direito e da Liberdade, crede, soldados, vosso comandante até hoje, é com bastante pesar que deixo o vosso comando, certo de que em breve regressareis à vossa terra, ao seio das vossas famílias, com a satisfação do dever cumprido e depois de terdes mostrado ao mundo inteiro o quanto valem os soldados de Portugal. E é neste momento de comoção que, usando da competência que me confere o artigo 134º do Regulamento Disciplinar, vos louvo a todos pelo espírito de disciplina manifestado, correção e compostura mantida durante o período de concentração de que toda a cidade foi testemunha, e louvo em especial os senhores capitães Guilherme Correia de Araújo (2) comandante interino do 1º Batalhão, Francisco dos Inocentes, tesoureiro do conselho administrativo, António José Teixeira (3) e Augusto Adriano Pires (4), comandantes de companhia, alferes José Manuel Chiote (5), Norberto Amâncio Alves (6), ajudante interino do Batalhão, 1º sargento Tavares, que desempenhou o cargo de oficial de tiro e armamento, pela leal e ativa cooperação prestada ao Comando em todos os trabalhos respeitantes a mobilização, inteligência e cumprimento do dever que manifestaram no desempenho dos serviços a seu cargo.
No dia seguinte, 20 de Abril de 1917, o Batalhão de Infantaria 10 deixou Bragança, embarcando em dois comboios – um pelas seis horas da manhã, com as 1ª e 4ª Companhias e outro ao fim da tarde, com as 2ª e 3ª Companhias.
O efetivo do Batalhão que, depois de longo percurso e sob o comando do capitão mais antigo, comandante da 1ª Companhia, Carlos Augusto Vergueiro (7), chegava a Lisboa em 22, cerca da uma hora e que devia ser embarcado no vapor D (Bohemien) era constituído por 30 oficiais, 61 sargentos e 1138 cabos e soldados, num total de 1229 homens.
Foi este o pessoal que começou a embarcar às 3 horas e 45 minutos, acabando às 7 horas, com a melhor ordem e disciplina nesse dia 22 de Abril de 1917.
Nestes primeiros apontamentos sobre a presença do Batalhão de Infantaria 10 de Bragança na Flandres, como unidade integrante do Corpo Expedicionário Português (C.E.P.) temos seguido o relatório que o seu último comandante, major António José Teixeira, escreveu mais tarde, por imposição de uma determinação inserida na Ordem do Exército nº 4 de 19 de Novembro de 1920 e hoje depositado no Arquivo Histórico Militar (8).
No prefácio do longo texto de 244 páginas acompanhadas por croquis e desenhos sempre que necessário, o autor, como muitas vezes fará, exprime os seus sentimentos, tanto os que o invadem no momento da escrita, como aqueles que o acompanharam na hora a hora desta longa, atribulada e trágica estadia em terras de França.
Cumprindo o seu dever ao relatar os factos ocorridos com o seu Batalhão, o autor reflete:
Fica-me também a consolação de concorrer para ser levantado um monumento perdurável a quantos filhos do Distrito de Bragança deram os seus melhores e maiores esforços ao triunfo da Causa Mundial e à Glória da Terra Portuguesa.
Vai nele uma parcela da minha alma de transmontano e de soldado português, que prestou o mais humilde concurso aos seus irmãos em armas, acompanhando-os sempre nas venturas e nas desditas, chorando as mesmas lágrimas de saudade e acalentando as mesmas esperanças de vitória final.
E logo a seguir:
É uma crónica da ação de Infantaria 10 na Grande Guerra documentada o melhor possível, para servir de material a alguém que, mais tarde e com a competência exigida para trabalhos desta ordem, faça a história do movimento que abalou o mundo inteiro durante anos seguidos de infinita amargura.
Colocado pois, quase cem anos depois, perante o desafio deste meu camarada de armas, só poderei deixar-lhe não apenas uma palavra de tranquila compreensão pelo sacrifício que lhes foi exigido, mas também a certeza de termos retirado lições do exemplo que nos deram. Sem por isso deixarmos de escrutinar responsabilidades, comportamentos e obrigações de todos os envolvidos.
A ação de Infantaria 10, como a ação de outras unidades portuguesas e de centenas de unidades militares de todo o mundo, está hoje presente no labor de inúmeros historiadores que tentam compreender e explicar as razões, as formas e os efeitos de um tão longo e despropositado sacrifício exigido a toda uma geração de jovens, cujos cadáveres ficaram espalhados pelos intermináveis campos europeus, como símbolo de poderes incapazes de governarem pelo povo e para o povo. Os cerca de nove milhões de militares sacrificados, em que se incluem os 53 mortos e os 41 desaparecidos do BI 10, não podem jamais deixar-nos indiferentes, por mais que a história tenda a ser esquecida!
Este apontamento que aqui deixo é uma pequena homenagem aos soldados transmontanos, sobretudo da terra-fria, que outros foram mobilizados por outras unidades, tanto para a Flandres como para África, como reconhecimento do seu sacrifício e memória de um tempo de angústia e “infinita amargura”.

……
(1) Carlos António Leitão Bandeira (1872-1962), coronel, nasceu no concelho de Bragança. Esteve em Angola a partir de 1906, onde foi capitão-mor do Cuango. Comandou o Regimento de Infantaria 10, em 1917. Aderiu à revolta monárquica em 1919, vindo a ser preso na Relação do Porto.
(2) Guilherme Correia de Araújo (1880-1943), coronel, nasceu em Lamego. Fez parte do C.E.P. embarcando em Lisboa no dia 22 de Abril de 1917. Tomou parte na Batalha de La Lys, regressando a Portugal em Maio de 1919. Comandou depois o 3º Batalhão do Regimento de Infantaria 10.
(3) António José Teixeira (1879-1963), coronel, nasceu em Bragança. Durante a Grande Guerra esteve em Angola até final do ano de 1915 e participou no C.E.P., embarcando para França em Abril de 1917, como oficial do Batalhão de Infantaria 10, que acabou por comandar. Feito prisioneiro de guerra, regressou a Portugal em Dezembro de 1918 e desembarcou em Lisboa no dia 3 de Janeiro de 1919. Tomou parte nas operações contra os monárquicos em Trás-os-Montes. Atingiu o posto de coronel em 1936.
(4) Augusto Adriano Pires (1877-1924), capitão, nasceu em Bragança. Fez a maior parte da sua vida militar em Angola, onde permaneceu, com raros intervalos, desde 1906 a 1916. Colocado no Regimento de Infantaria 10 em 1916, veio a fazer parte do C.E.P., embarcando em Lisboa a 22 de Abril de 1917. Ferido e prisioneiro na Batalha de La Lys, acabou por regressar a Portugal em Maio de 1919. Voltou a Angola em 1919, onde veio a falecer.
(5) José Manuel Chiote (1873-1939) nasceu em Freixo de Espada à Cinta. Fez parte do C.E.P., embarcando em Lisboa em 22 de Abril de 1917. Tomou parte da Batalha de La Lys e foi feito prisioneiro, tendo regressado a Portugal em Fevereiro de 1919. Colocado no Regimento de Infantaria 30, passou ao Regimento de Infantaria 10 em 1920.
(6) Norberto Amâncio Alves (1884-1944) nasceu em Figueira de Castelo Rodrigo. Esteve em Angola na campanha de 1914-1915, onde participou no combate de Naulila. Fez parte do C.E.P., embarcando em Lisboa em 22 de Abril de 1917. Tomou parte na Batalha de La Lys, ficando intoxicado com gases. Regressou a Portugal em Agosto de 1918. Tomou parte nas operações contra os monárquicos em 1919. Voltou a Angola em 1923-1924.
(7) Carlos Augusto Vergueiro (1865-1936), coronel, nasceu em Bragança. Tomou parte na revolta do 31 de Janeiro de 1891. Esteve em Angola com a força expedicionária, de 1914 a 1915. Fez parte do C.E.P., embarcando em Lisboa em 22 de Abril de 1917. Regressou de França em Abril de 1918. Combateu contra os revoltosos monárquicos no sul do distrito de Bragança em Fevereiro de 1919. Comandou o 6º Grupo de Metralhadoras em 1919. 
(8) AHM/01/35/Cx1343: António José Teixeira, Infantaria 10 na Flandres. Assinado em 30 de Agosto de 1922. Sempre que neste texto não for mencionada outra fonte, as transcrições referem-se a este relato.

quinta-feira, 27 de outubro de 2016

NOTAS SOBRE UM RECONHECIMENTO MILITAR EM 1845


O texto completo foi publicado no livro Trás-os-Montes e Alto Douro – Mosaico de Ciência e Cultura. S.l., 2011, pp.259-263. Coordenação de Armando Palavras.

Esta terceira e última parte faz referência a outros trabalhos de reconhecimento e de descrição do território nacional feitos pelo Exército em especial no terceiro quartel do século XIX.


Parte 3:

Ficava assim reconhecido este itinerário, da Barca do Pocinho a Miranda, com anotações preciosas sobre o terreno, os obstáculos, as aldeias e vilas e alguns elementos de natureza militar. Mas o capitão Sobral já efectuara, no ano anterior, um outro reconhecimento do itinerário de Mesão Frio a Freixo de Espada à Cinta, numa extensão total de 1.799 minutos, cujo relatório foi assinado em Bragança, no dia 1 de Dezembro de 1844. Relativamente a Freixo, o capitão assinalava que a vila tinha 436 fogos, era cabeça de concelho e era “notável pela riqueza e produção do seu solo, que abunda em azeite, amêndoa, pasto, e todo o género de frutos que geralmente se colhem em Trás-os-Montes” (13).
Os reconhecimentos militares do terreno, normalmente a cargo dos engenheiros pertencentes ao Real Corpo de Engenheiros do Exército nunca deixaram de se fazer, mas a campanha iniciada na década de 40 do século XIX prosseguiu por toda a década de 50 e para além dela, havendo relatórios até finais dos anos 70. Eles permitiram um conhecimento mais profundo de Trás-os-Montes e de outras províncias, em especial das terras mais distantes e menos visitadas. Muitos dos trabalhos foram aproveitados para a elaboração da Carta Geográfica de Portugal publicada em 1865, na escala 1/500.000, primeira carta topográfica do território português, em toda a sua extensão. Ao mesmo tempo, e com início em 1852 elaborava-se a Carta Corográfica (Carta Geral do Reino) na escala 1/100.000. As suas 37 folhas foram publicadas entre 1862 e 1904. Ambas as Cartas tiveram o general engenheiro Filipe Folque como principal responsável e impulsionador, em especial no desempenho das funções de Director Geral dos Trabalhos Geodésicos e Cartográficos do Reino, entre 1844 e 1871.
Nesta época, em pleno século XIX, o Exército tinha responsabilidades muito abrangentes, tanto no que respeitava ao conhecimento do território como das suas populações e riquezas. Isto justifica que, depois de um longo período de intensos e prolongados conflitos em que Portugal esteve envolvido na primeira metade do século, o Exército tivesse necessidade de proceder a um profundo reconhecimento territorial, o que incluiu, em 1860, um recenseamento populacional, que antecedeu, em quatro anos, o que seria feito pela administração pública em 1864, conhecido como o primeiro recenseamento sistemático da população portuguesa.
A verdade é que o Exército fez esse trabalho de campo em 1860, do qual elaborou os respectivos “Mapas Estatísticos”, segundo um modelo único, e com informações sobre a população, os edifícios, as subsistências, os transportes e as profissões. Relativamente a Lagoaça existe um “Mapa estatístico da Paróquia de Lagoaça, concelho de Freixo, distrito administrativo de Bragança” (14). A povoação tinha 340 fogos, sendo a sua população constituída por 685 homens e 740 mulheres, num total de 1425. Os principais recursos eram constituídos por (mencionados segundo a ordem do mapa) 5.000 alqueires de trigo e 7.000 de centeio, 3.000 moios de batata, 400 almudes de vinho e outros 400 de azeite. Quanto a cabeças de gado havia 190 vacum, 3.700 lanígero, 700 cabrum e 200 suíno. No que respeita a águas, havia três fontes públicas e em relação a transportes, contavam-se 200 bestas de carga, 40 carros de bois e um barco de passagem, que podia transportar 12 pessoas. A povoação estava bem servida de profissões, pois havia cinco alfaiates, seis sapateiros, um chapeleiro, cinco carpinteiros, dois ferreiros e três ferradores.
        Com os imensos trabalhos de reconhecimento do território levados a efeito pelo Exército na década de 40 e em toda a segunda metade do século XIX, Portugal tornou-se mais conhecido e bem podemos recordar o que o general Neves Costa afirmava no seu relatório de 1841: “Depois que, pelas precedentes diversas considerações, tivermos reconhecido em geral alguns dos terrenos cuja topografia deve interessar à nossa defesa, e que por isso hajam de entrar a formar parte da indicação do que temos de fazer, passaremos então a examinar quais sejam as direcções de ataques mais ou menos prováveis, e que possam ter lugar contra o nosso País; e por consequência, quais sejam os terrenos que, nessas direcções, mais particularmente pareçam interessar e cujo exame e conhecimento topográfico se torne por tal motivo necessário, para esclarecer quaisquer dúvidas ou confirmar quaisquer opiniões que acerca do futuro e definitivo Plano de Defesa do Reino possam suscitar-se a respeito dos sobreditos terrenos cuja indicação satisfará igualmente ao fim especial do trabalho de que fomos encarregados” (15).

Carta Geográfica de Portugal, 1:500000,
publicada sob a direção de Filipe Folque em 1865.













......

13 Belchior José Garcês Sobral, Reconhecimento do itinerário de Mesão Frio a Freixo de Espada à Cinta, 1844 (AHM, cota 3/1/18/7).
14 Ver o original no AHM, cota 3/1/70/44.
15 José Maria das Neves Costa, Idem.


domingo, 23 de outubro de 2016

NOTAS SOBRE UM RECONHECIMENTO MILITAR EM 1845


O texto completo foi publicado no livro Trás-os-Montes e Alto Douro – Mosaico de Ciência e Cultura. S.l., 2011, pp.259-263. Coordenação de Armando Palavras.

Esta segunda parte corresponde ao reconhecimento feito pelo capitão Sobral em 1845, desde o Pocinho até Miranda, com informações sobre todo o itinerário e as povoações por onde passou.


Parte 2.

O reconhecimento do itinerário do Pocinho a Miranda efectuado pelo capitão Sobral em 1845 inseria-se num conjunto de trabalhos relacionados mais com o Plano do que com a Carta, embora os respectivos relatórios pudessem vir a ter interesse topográfico. Neves Costa já o tinha referido: “Finalmente concluiremos este nosso trabalho com algumas considerações relativas a vários melhoramentos da nossa topografia militar, sem os quais julgamos mui difícil que possam realizar-se, nem tornar-se verdadeiramente úteis, os trabalhos topográficos, que para a defesa do Reino queiram ou hajam algum dia de empreender-se”. Levantando então várias hipóteses relativamente ao avanço do inimigo em direcção a Lisboa, seu principal objectivo, Neves Costa escreve as seguintes observações, no que respeita à passagem do Douro, a partir de Trás-os-Montes: “Se o inimigo, estando de posse da Província de Trás-os-Montes, se resolvesse a passar o Douro, para penetrar para qualquer fim que seja, no interior da Província da Beira Alta e Estremadura Portuguesa, e isto, ou do lado de Torre de Moncorvo, ou do lado de Vila Real e Peso da Régua sobre Lamego, é evidente a necessidade de conhecermos a margem esquerda do dito Rio, ao menos na proximidade dos mencionados pontos de passagem; e, a poder ser, desde a foz do Côa até à foz da ribeira da Póvoa, e mesmo o terreno mais para o interior, porque sendo ele inteiramente desconhecido, talvez ali se encontrem posições vantajosas e mui influentes no sistema geral de defesa do Reino”. Ou seja, as zonas junto do Douro superior, quer na sua margem esquerda, quer mais para o interior, eram nesta altura inteiramente desconhecidas do ponto de vista estratégico, tanto na sua topografia, como sob o ponto de vista militar. Urgia então iniciar os respectivos reconhecimentos. Foi essa a missão do capitão Sobral, a partir, pelo menos, de 1844.

Sigamos então as informações do relatório do capitão Sobral. Ele sai da Barca do Pocinho no dia 2 de Janeiro de 1845, como dissemos, às oito horas da manhã. A estrada tem a direcção NE-SO e o terreno é montanhoso. O caminho até Moncorvo faz-se por uma estrada com 28 palmos de largura no início, que diminui para 12 palmos junto da foz do Sabor, chegando-se à dita vila em 124 minutos exactos, como o relator anota (12). Sobral continua a sua viagem referindo os pontos notáveis, como subidas, descidas, quintas, ribeiros, entre Moncorvo e Cabeço da Mua, trajecto em que a estrada tem sempre cerca de 20 palmos de largura. Segue a meia encosta na Serra de Reboredo, vendo-se à esquerda, um vale com algumas quintas, que têm oliveiras, amendoeiras e onde se cultivam cereais. A serra tem duas léguas de extensão. Até Cabeço da Mua passaram-se mais 113 minutos, num total de 237 minutos desde a saída.
O reconhecimento segue agora para Carviçais, com passagem por um caminho que vai para Mós. Carviçais é uma “povoação rica e de importância do concelho de Moncorvo; tem 295 fogos e recursos de víveres e forragens e alojamento: pode comodamente alojar 600 homens e 100 cavalos”. Foram mais 60 minutos, exactamente, uma hora. O itinerário, medido em minutos, já leva 297, quase cinco horas.
Finalmente, o caminho segue para Lagoaça. Logo à saída de Carviçais há uma ramificação para Mogadouro, um mau caminho de quatro léguas, que passa por Estevais, Quinta das Quebradas, Castelo Branco e Vale de Porco, antes de chegar a Mogadouro. É claro, poder-se-ia seguir este caminho para Miranda, mas “a estrada do presente itinerário é sempre preferida”. Ou seja, por Lagoaça é melhor caminho!
No caminho para Lagoaça passa-se por Fornos, que é uma pequena aldeia a quatro léguas e meia do Pocinho. Pouco depois surge então Lagoaça, à direita da estrada, “grande e rica aldeia”, a cinco léguas do início. De Carviçais são mais 142 minutos, 479 minutos depois da saída do Pocinho.
Sobre Lagoaça diz o capitão Sobral: “Esta aldeia tem 240 fogos e pertence ao concelho de Freixo de Espada à Cinta; é povoação moderna e que tem engrandecido pela sua agricultura e comércio com o Reino vizinho. Tem comodidades para 600 praças e está situada a meia légua do Douro”.
Depois de Lagoaça, o itinerário prossegue para Nordeste, com uma ramificação para Vilarinho (“cabeça duma freguesia de 116 fogos que pertence ao concelho de Mogadouro, situada a pouca distância do rio Douro”), sendo que, desde o início até às imediações deste ponto o terreno é de textura xistosa e “deste ponto até às proximidades de Miranda é o terreno granítico”.
Seguindo o itinerário, há ramificações à esquerda para a aldeia de Castelo Branco e à direita para Bruçó, alcançando-se uma portela na serra da Garjopa (?), de onde se avista a vila de Mogadouro, à esquerda, a cerca de légua e meia. Mogadouro “tem 160 fogos, é cabeça de concelho e uma das mais antigas vilas do Reino; tem um castelo arruinado, aonde aparecem ainda os restos do palácio dos antigos Távoras”.
Há depois outras ramificações para Vilar de Rei, Vilarinho, Paçó, até chegar a Vila de Ala, Tó, Brunhosinho e finalmente Sendim, num total de 909 minutos desde a saída do Pocinho, mais de 15 horas, portanto. Sendim fica já no concelho de Miranda, sendo “uma grande e rica aldeia (…) muito maior e mais importante do que a cidade! Tem 225 fogos e além da sua avantajada colheita de produtos agrícolas, tem grande comércio, e uma importante feira mensal; está a meia légua do Douro e fronteira a Fermoselho (sic), grande vila espanhola, d’além Douro”.
O itinerário prossegue ainda até Miranda, onde se chega após 1.118 minutos de caminho, ou seja, nada menos que 18 horas e 38 minutos, como anota o capitão Sobral. Miranda é uma cidade fortificada, mas “está votada à penúria, não possuindo actualmente senão gloriosas reminiscências da sua antiga grandeza”. Isto tudo pelas seguintes razões: “A posição (…) fora de estrada alguma seguida; o abandono em que ficou desde a saída da Mitra, Autoridades e tropa para Bragança; os seus poucos capitais e nenhuma indústria”.

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12 As distâncias referidas no relatório são medidas a pé (as chamadas horas de marcha), embora fosse habitual as equipas de reconhecimento deslocarem-se a cavalo. O modelo de informação é comum a outros relatórios de reconhecimento militar.



sexta-feira, 21 de outubro de 2016

NOTAS SOBRE UM RECONHECIMENTO MILITAR EM 1845


 

Este texto foi publicado no livro Trás-os-Montes e Alto Douro – Mosaico de Ciência e Cultura. S.l., 2011, pp. 259-263. Coordenação de Armando Palavras.

Para a sua publicação neste blogue, será dividido em três partes, a primeira com a ideia geral sobre os reconhecimentos militares em meados do século XIX; a segunda com o reconhecimento concreto desde o Pocinho até Miranda; a terceira com algumas considerações finais.



Parte 1

Às oito horas da manhã do dia 2 de Janeiro de 1845, o capitão de Engenharia Belchior José Garcês Sobral (1) iniciava o reconhecimento do “Itinerário da Barca do Pocinho à cidade de Miranda, passando pela vila de Moncorvo, aldeias de Carviçais, Lagoaça, Sendim e outros pontos notáveis, fazendo parte da grande e antiga estrada denominada hoje ‘Mourisca’ que conduz de Portugal a diferentes partes de Espanha”. No título do seu relatório, feito no quartel de Bragança e datado de 2 de Fevereiro de 1845, o capitão Sobral acrescentava: “Esta estrada é real e de muito trânsito”(2).
Porque fazia o Exército este reconhecimento? Havia duas tarefas que decorriam desde há muito anos, a que o Exército se encontrava ligado – a Carta Geral do Reino e o Plano Geral de Defesa do Reino. Muitos trabalhos de campo, como os reconhecimentos, poderiam ser úteis aos dois projectos.
Sem mencionar preocupações anteriores, foi a partir de 1788 que a Academia das Ciências de Lisboa começou a discutir mais profundamente a forma de levar a efeito os trabalhos necessários à realização de uma Carta Geral do Reino. Custódio Gomes Vilas Boas (3) foi a pessoa a quem a Academia pediu a elaboração de um parecer sobre o assunto. As suas preocupações confluíram em duas direcções – por um lado, a determinação da posição geográfica de uma rede de pontos para apoio dos levantamentos topográficos, e por outro, o levantamento da configuração do terreno, a realizar por comarcas, com posterior uniformização (4). Mas quem iniciou os trabalhos foi Francisco António Ciera (5), eminente matemático, que entre 1790 e 1791 percorreu Portugal e escolheu uma série de pontos que, entre si, constituíssem um adequado sistema de triangulação, como base dos trabalhos geodésicos da Carta. Depois de uma viagem ao Sul, partiu para o Norte em Abril de 1791, para uma missão de dois meses, ficando a sul do rio Douro (6). Completou o reconhecimento no final do ano, entre Outubro e Novembro, em que visitou a Galiza, acompanhado de oficiais espanhóis, e Trás-os-Montes. Vários engenheiros militares estiveram ligados a estes trabalhos, que prosseguiram até 1804, altura em que foram interrompidos, pelas dificuldades que o país atravessava.
Em consequência dos acontecimentos políticos ocorridos em Portugal, desde as Invasões Francesas até às Lutas Liberais, só terminadas em 1834, bem como os conflitos internos que se prolongaram até à década de quarenta, os trabalhos da Carta Geral do Reino só muito tardiamente foram retomados, ainda assim de forma muito incipiente. Na década de trinta, Filipe Folque (7) e Pedro Folque (8) iniciaram os trabalhos de triangulação, de levantamento e reconhecimento do terreno, prosseguindo depois os trabalhos, até à realização da primeira carta de Portugal, a Carta Geográfica de Portugal de 1865, na escala 1/500.000.
Para esta realização tinham também contribuído os estudos feitos por uma comissão nomeada em Dezembro de 1843, constituída por engenheiros militares (João José Ferreira de Sousa, Filipe Folque e Luís Herculano Ferreira) a fim de que “propusesse um sistema geral de Escalas, de Convenções e de Desenho Topográfico para servir de norma nos trabalhos da Carta do Reino, a fim de os tornar mais fáceis, uniformes e homogéneos” (9).
Por outro lado, o Plano Geral de Defesa do Reino era também uma preocupação antiga, que o Conde de Lippe, a partir de 1762, o Príncipe Waldeck, nos anos de 1797 e 1798, ambos comandantes do Exército Português e outros comandantes portugueses tinham recomendado e mesmo realizado, através de longos reconhecimentos territoriais e reorganização das forças militares de Portugal.
Mas foram as Invasões Francesas que tornaram urgente a realização dos estudos e dos reconhecimentos para o estabelecimento do Plano de Defesa. Neste campo, e apesar de todos os trabalhos que entretanto se foram realizando, é notável o documento elaborado pelo brigadeiro José Maria das Neves Costa (10), em resposta a uma portaria de 11 de Abril de 1838 e datado de 1841, ano da sua morte (11). Nestas Observações, escreve o autor: “Desenvolvendo mais as precedentes ideias, observamos que, não havendo actualmente quem tenha conhecimento geral e exacto da natureza geográfica do nosso território, precisamos conhecer ao menos aproximadamente os seus principais Rios e Montanhas que formam outros tantos dos principais obstáculos naturais, que especialmente dificultam as operações de guerra”. E acrescenta: “A respeito dos mencionados obstáculos naturais, observaremos também que ainda quando os pudéssemos conhecer percorrendo toda a superfície terrestre do Reino, não dispensaria isso a redacção de uma carta militar aonde eles se achassem representados, pois seria esse o melhor modo pelo qual poderíamos perceber as mútuas relações de grandeza, posição e distâncias dos referidos obstáculos entre si, e a respeito daqueles terrenos mais acessíveis ou transitáveis que entre eles mediassem e pelos quais, com mais probabilidade se devam esperar as operações da guerra”.
O que Neves Costa queria dizer é que os trabalhos da Carta e os trabalhos do Plano de Defesa podiam apoiar-se mutuamente e seguir simultâneos ou paralelos, já que nem um nem outro tinham conhecido grandes progressos nos últimos tempos. No fundo, os reconhecimentos no terreno serviam não só para estudar os obstáculos, mas também para recolher as informações e as medidas topográficas e geodésicas. Parece, no entanto, não ter sido isso que aconteceu, já que os trabalhos de reconhecimento para o Plano de Defesa estavam no terreno dois anos depois e os trabalhos do levantamento e dos estudos cartográficos só vão iniciar-se em 1859.

[1] Belchior José Garcês Sobral, oficial do Real Corpo de Engenheiros do Exército.
2 Ver o original no Arquivo Histórico Militar (AHM), cota 3/1/19/7.
3 Custódio Gomes Vilas Boas, oficial engenheiro do Exército e membro da Academia das Ciências de Lisboa. Fez vários levantamentos topográficos do território português e publicou várias obras científicas de Astronomia, Geografia e outras.
4 Maria Helena Dias, “As explorações geográficas dos finais de Setecentos e a grande aventura da Carta Geral do Reino de Portugal”. Revista da Faculdade de Letras, Porto, 2003, p. 384-385.
5 Francisco António Ciera, eminente matemático, astrónomo e cartógrafo português (1763-1814), foi o criador do telégrafo óptico português, instrumento inovador para a sua época.
6 Francisco António Ciera, Viagem geográfica e astronómica pelo Reino de Portugal para a construção da carta topográfica e determinação do grau do meridiano (AHM, cota 4/1/16/21).
7 Filipe Folque, General engenheiro do Exército e Doutor em Matemática por Coimbra (1800-1874). Em 1843 recebeu a incumbência de realizar a carta topográfica de Portugal na escala 1/1000.000, juntamente com seu pai, Pedro Folque.
8 Pedro Folque, General engenheiro do Exército (1744-1848) distinguiu-se em várias missões ao serviço de Portugal, tendo trabalhado na década de noventa do século XVIII com Francisco António Ciera na Carta Geográfica do Reino. Várias vezes encarregado de trabalhos geodésicos fundamentais, chegou a ser comandante do Real Corpo de Engenheiros entre 1835 a 1848.
9 Ver o respectivo relatório no AHM, cota 3/1/13/21.
10 José Maria das Neves Costa foi oficial do Real Corpo de Engenheiros (1774-1841), fez inúmeros trabalhos topográficos no início do século XIX, entre os quais a organização das Linhas de Torres Vedras durante a 3ª invasão francesa. Nunca deixou de trabalhar e escrever sobre o terreno, a topografia, a cartografia e a defesa.
11 José Maria das Neves Costa, Considerações militares tendentes a mostrar quais sejam no território português os terrenos cuja topografia ainda falta conhecer para servir de base a um sistema defensivo do Reino, que seja conforme com a sua natureza geográfica e com os princípios gerais da ciência da guerra, 1841 (Ver o original no AHM, cota 3/1/13/7).


domingo, 16 de outubro de 2016

UMA VIAGEM A S. PAULO


Este texto foi publicado na Revista da Associação 25 de Abril, Toronto, 2013.



Em 1982 comemorei o 25 de Abril no Brasil, nas cidades do Rio de Janeiro e de S. Paulo. Acompanhei nessa viagem o conselheiro da revolução António Marques Júnior, que recentemente nos deixou. Este texto é também uma homenagem de saudade.
Pela resolução 83/82 de 21 de Abril, o Conselho da Revolução, pouco antes de terminar o seu mandato, promoveu a oficial general o “Capitão” João Sarmento Pimentel, velho republicano, militante da oposição ao regime do Estado Novo, que viveu largos anos exilado no Brasil. O Marques Júnior foi encarregado de lhe entregar as estrelas de general, deslocando-se para esse propósito a sua casa, em S. Paulo. Pela amizade que nos ligava e por várias conversas que já tivéramos acerca desta promoção, entendeu convidar-me para o acompanhar. Foi para mim um enorme privilégio.
Em virtude de se comemorar nesse ano o 8º aniversário do 25 de Abril, aproveitámos para passar alguns dias junto da comunidade portuguesa do Rio de Janeiro, antes de seguirmos para S. Paulo. O Marques Júnior tornou-se desde logo uma estrela, não só junto dos portugueses, mas também junto dos brasileiros que se associaram às comemorações do 25 de Abril. Com a sua sensibilidade, entusiasmo, sentimento e verdadeira paixão pela revolução portuguesa e pela conquista da liberdade em Portugal, o Marques Júnior sensibilizou todos os que assistiram à sessão comemorativa e emocionou-se quando teve de falar sobre a nossa revolução. Foi uma espontânea simpatia mútua, entre ele e todos os que o escutavam.
Lembro-me que estava presente a escritora brasileira Lygia Fagundes Teles que muito se comoveu com o capitão português e que teve para com ele palavras de muita admiração por aquilo que os capitães tinham feito em Portugal, ao restituir a liberdade ao povo, o que mais uma vez sensibilizou profundamente o Marques Júnior. Numa das noites assistimos a uma representação teatral, com a sala completamente cheia, tendo um dos actores saudado a nossa presença na sala, o que desencadeou uma prolongada salva de palmas. E como não podia deixar de ser, mais uma vez o Marques Júnior expôs toda a sua emoção, embargando-se-lhe a voz ao tentar agradecer.
Para mim foi também uma surpresa enorme. Já conhecia o Marques Júnior desde o 25 de Abril e já tinha trabalhado com ele nas comemorações do 3º aniversário do 25 de Abril, mas nunca me tinha apercebido desta sua face tão humana e sensível.
Daí em diante a cena era sempre a mesma, quando se falava em democracia, liberdade, 25 de Abril, capitães, era certo e sabido que ambos ficávamos comovidos, de olhos húmidos e voz embargada, a que se seguiam as palmas compensadoras.
Recompensados com este acolhimento fraterno nos mais diversos eventos em que participámos no Rio de Janeiro, seguimos para S. Paulo para cumprirmos a missão que levávamos. Em toda a viagem, desde Lisboa, fomos planeando o nosso encontro com o “Capitão”, que conhecíamos dos seus livros e da sua vida. Eu terminara o curso de História em 1980 e tivera oportunidade de ler as “Memórias do Capitão”, publicadas em 1974, ano da Revolução. Levava o livro comigo para conseguir a dedicatória, pelo que tivemos oportunidade de reler, por exemplo, a sua participação na primeira revolta contra a Ditadura Militar em 3 de Fevereiro de 1927, no Porto. Numa escrita vigorosa, como aliás em todo o livro, o Capitão explica como se adiou a revolta de 31 de Janeiro, data simbólica, para 3 de Fevereiro, sendo que, mesmo assim, Lisboa só poderia apoiar a revolta 12 horas depois! “Acreditando na promessa, aceitaram [os revolucionários do Porto] implicitamente a derrota”, afirma o Capitão. E nem isso, pois os revolucionários de Lisboa só saíram no dia 7 (a “revolução do remorso”, como lhe chama nas suas Memórias), podendo assim a ditadura “bater os seus inimigos, primeiro um e, depois deste vencido, o outro”.
Conversando sobre o longo e corajoso rumo de vida do nosso antecessor, que se exilara logo a seguir à revolução do Porto de 1927 e só voltara a Portugal depois do 25 de Abril para comemorar finalmente a liberdade de todos, concluíamos que seria um privilégio podermos falar com o nosso anfitrião e entregar-lhe as estrelas de general, afinal mais merecidas do que muitas outras…
O Marques Júnior preparava algumas palavras para dizer na ocasião, mas acabou por desistir e concluir que diria as palavras que o coração lhe ditasse no momento…
Fomos directamente para sua casa, onde toda a família nos esperava. Era o dia 25 de Abril de 1982!
O Capitão (que aliás já era coronel, anteriormente promovido pelo Conselho da Revolução!) João Sarmento Pimentel recebeu-nos na sua cadeira de rodas, do alto dos seus 94 anos, com um visível contentamento e agrado, que as suas palavras de boas vindas acentuaram e, mais uma vez, nos comoveram. O Marques Júnior, no seu curto improviso disse o que era essencial, antes de se calar emocionado - o quanto Portugal devia aos lutadores antifascistas, e como o 25 de Abril não fora mais que a continuação dessa mesma luta do povo português. E que as estrelas que lhe levávamos eram um tributo justo e mínimo à sua resistência em prol da liberdade e da democracia, agora implantadas em Portugal. Acho que o Marques Júnior não deixou de fora nenhuma das palavras que lhe embargavam a voz e lhe humedeciam os olhos!
No fim, saímos de sua casa com a plena satisfação do dever cumprido, e eu trazia um autógrafo na primeira edição das “Memórias do Capitão” que não podia deixar de me enternecer: “Ao major Aniceto Afonso, homenagem do general João Sarmento Pimentel. São Paulo, 25 de Abril de 1982”, encimado pelo seu ex-libris!
O que hoje posso aqui deixar é o parágrafo final do Prefácio de Jorge de Sena: “Se lesse estas páginas, o Camões que escreveu as cartas picarescas, as canções diáfanas de espiritualidade, e soube tão bem o que é o heroísmo que fez Fernão Veloso contar dos Doze de Inglaterra, por certo enxugaria, oh disfarçadamente, uma lágrima de satisfação. Afinal, ainda Portugal vai dando, numa mesma pessoa, homens e escritores”.
E posso também envolver nesta homenagem o meu companheiro António Marques Júnior, membro por direito da galeria dos homens excepcionais que Portugal ainda vai dando…


Dois aspetos das comemorações do 25 de Abril no Rio de Janeiro em 1982.



Autógrafo do autor no meu exemplar das "Memórias do Capitão".