quinta-feira, 29 de setembro de 2016

UMA CURIOSA CARTA DE 1973

Este texto foi publicado na Revista da Associação Cultural 25 de Abril, Toronto, 2016.



Em finais de 2009, quando eu e o Carlos de Matos Gomes fazíamos investigação para o nosso livro “Alcora – O Acordo Secreto do Colonialismo” tivemos acesso ao arquivo de Marcelo Caetano depositado na Torre do Tombo, devidamente autorizados pelo filho do antigo Presidente do Conselho de Ministros. A parte respeitante à correspondência é mais pobre do que poderia pensar-se, embora com interesse para o levantamento de algumas relações de poder da época.

Entre outros assuntos que nos interessaram, vou hoje destacar uma carta que o Engº. Jorge Jardim (1) enviou ao Ministro da Defesa, Sá Viana Rebelo, e da qual este deu conhecimento a Marcelo Caetano, com data de 18 de Abril de 1973, portanto um ano antes do movimento revolucionário do 25 de Abril de 1974, que depôs Marcelo Caetano e inaugurou o actual regime democrático.

Existe a ideia da pouca influência que Jorge Jardim teria junto do Governo Português, nesta época, em especial depois do afastamento de Salazar. O teor e o conteúdo desta carta parece indicar o contrário, pelo menos no que respeita à questão colonial e às relações que uma importante facção do regime queria estabelecer com a África do Sul, no âmbito do Acordo secreto já então muito avançado.

É sobre este assunto que Jorge Jardim primeiro se debruça, nos seguintes termos:

“O seu colega da República da África do Sul, com quem estive em Cape Town em 29/03/73, envia-lhe os mais amigos cumprimentos e confirmou-me o propósito de ir visitá-lo a si, a Lisboa (…)
Preocupando-se altamente com a evolução dos problemas no Malawi e na Zâmbia, reafirmou-me que poderíamos contar com todo o decidido apoio por parte da República da África do Sul.
Foi mesmo muito entusiástico quanto à nossa política de “envolvimento progressivo” da Zâmbia pela concessão de facilidades.
Não poupou comentários agrestes, e mesmo violentos, quanto à atitude rodesiana de encerramento da fronteira com a Zâmbia (…)
Penso que desejará apreciar consigo a eventualidade da transferência para Pretória de alguns serviços “Alcora” e assegurou-me, muito enfaticamente, que de modo algum transmitiriam aos rodesianos informações que se pudessem ligar com o nosso planeamento bilateral de actuação.
Ainda acerca da estrutura “Alcora”, pediu-me para eu ter demorada entrevista com o capitão de mar-e-guerra W.N. du Plessis e solicitou-me para a si referir o interesse que teriam em ver reforçada a participação portuguesa na P.A.I.O. (2)
 Este interesse, segundo detalhadamente me veio a explicar o comandante Du Plessis, resulta de considerarem esse órgão do “Alcora” como muito importante para a coordenação de informações, podendo nele recolherem-se dados de interesse para o esforço comum e para além do trabalho que vem realizando o “Sub-Committee of Inteligence” instituído em Junho de 1971.
Segundo me foi referido, para além do pessoal auxiliar, o “PAIO” teria a participação permanente de um oficial (com a patente de coronel) por Portugal, pela RAS e pela Rodésia.
No nosso caso parece que se seguiu a orientação de a representação portuguesa no PAIO ser confiada ao adido militar em Salisbury.
Consideram que, devido às muitas atribuições e responsabilidades que incidem sobre o nosso adido militar, essa colaboração portuguesa se tem revelado insuficiente e muito apreciavam se lhe fosse possível, a si, designar oficial qualificado para permanente participação no PAIO.
Aqui lhe transmito esse pedido do seu colega Botha e as explicações que me foram dadas, complementarmente, pelo comandante Du Plessis em 30/03/73.
O comandante Du Plessis dirige o departamento de informação estratégica nos serviços do general Du Toit (M.I.A.) que provavelmente acompanhará o ministro Botha a Lisboa.
Por este seu colega foi-me confirmado que o Governo de Pretória considera muito favoravelmente a concretização da assistência que por si lhe foi solicitada, quando da reunião de Lourenço Marques”.

Jorge Jardim aproveita a carta para abordar outro assunto de muito melindre, ainda relacionado com a situação nas colónias e um obscuro fornecimento de material de guerra a Portugal. Diz o seguinte:

“Por último quero referir-me ao fornecimento de munições soviéticas a Portugal e de que me tenho vindo a ocupar no seguimento do que me foi solicitado pelo Comandante-Chefe e teve a sua aprovação.
O “Cláudia” saiu efetivamente de porto russo para Trípoli com aquele equipamento, anunciando a data de chegada a Lisboa que foi sendo progressivamente adiada.
Isso me levou a fazer algumas indagações (…) Dessas indagações me resultou a informação de que o “Cláudia” transportava, igualmente, material para outro destino na Europa.
A demora em Trípoli resultou das negociações para esse outro fornecimento e de aguardarem a chegada de elementos que o acompanhariam.
Fiquei altamente preocupado com a possibilidade de nos vermos envolvidos em alguma tramóia escandalosa, no âmbito internacional, em que pudéssemos figurar como “bode expiatório”.
Fiz assim saber a Gunter Leinhauser (em contacto com emissário meu em Hamburgo) que não consentiríamos na passagem do “Cláudia” (3) por Lisboa desde que trouxesse a bordo outro equipamento para eventual cliente diverso.
Recebi o mais formal compromisso de que isso não aconteceria e quando se verificou o apresamento do “Cláudia” bem avaliará o alívio que senti pela inspirada preocupação que tinha tomado.
Todo o nosso material se perdeu naquele apresamento mas, ao menos, foi exclusivamente o I.R.A. que ficou com a responsabilidade (…)
Gunter Leinhauser assegurou-me que faria em breve o reembolso da primeira prestação que havíamos liquidado (a 2ª prestação nunca chegou a ser transferida para a Suíça) e disponho de valiosa carta dele autógrafa em tal sentido (…)
Como sabe, o seu gabinete dispõe de fotocópia do conhecimento de carga relativo ao transporte do nosso material no “Cláudia”.

Como se vê, um assunto surpreendente, com contornos bastante obscuros, a necessitar outra investigação que na altura não estávamos interessados em fazer. Mas o assunto não deixa de suscitar perplexidades que estão, tanto quanto conheço, por investigar. Apesar do muito trabalho que se tem feito sobre estes anos finais do Estado Novo e em especial da situação nas colónias onde havia operações militares, são ainda muitos os assuntos que estão a precisar de novos interessados e de novos projectos de investigação.

Com o livro que publicámos em 2013 sobre o acordo “Alcora” entre Portugal, a África do Sul e a Rodésia (4) ficou esclarecida uma boa parte das relações estabelecidas pelos três governos de então, no sentido de resistir aos “ventos da História” que já sopravam sobre África havia muito tempo e aos quais Portugal e os regimes racistas da África Austral continuavam a querer resistir.

Quanto ao assunto da compra de armas e outro equipamento pelo governo português durante o período da guerra colonial, em especial na sua fase final, está ainda muito por esclarecer. Mas não deixarão de ser surpreendentes as conclusões que vierem a ser estabelecidas, em resultados de estudos sérios sobre esta época. Esperemos que tal seja possível.

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(1)     Jorge Jardim, engenheiro agrónomo, era nesta data um importante empresário da comunidade branca de Moçambique. Tinha privado com Salazar e aceitara missões diplomáticas específicas e difíceis durante o período da guerra colonial. As relações com Marcelo Caetano nunca foram tão próximas, mas ele continuou a servir de agente especial em várias missões importantes para o regime. A partir de 1972 tentou uma aproximação à Frelimo através do Presidente Kaunda da Zâmbia, tendo apresentado um programa de transição política para Moçambique (Programa de Lusaca) que nunca chegou a ter luz verde de qualquer das partes.


(2)     PAIO ou Permanent Alcora Inteligence Organization (Organização Permanente de Informações Alcora) era um dos organismos conjuntos que os negociadores sul-africanos e portugueses estavam a implementar, a fim de coordenarem políticas e ações militares no âmbito da África Austral e do chamado “Exercício Alcora”, uma verdadeira aliança política e militar.

(3)     A história do navio “Cláudia” é conhecida. Está referida, por exemplo, no livro “Historical Dictionary of Naval Intelligence” de autoria de Nigel West, publicado no Reino Unido, em 2010. O que o autor não refere é a circunstância de o navio também transportar material de guerra para Portugal, além da carga que se destinava ao IRA.

(4) Já está nas livrarias a 2ª edição deste livro, pela editora Objectiva, a apresentar brevemente. O prefácio a esta edição é de Jaime Gama.


Nota: Ver aqui duas fotos da captura do navio “Claudia” em Março de 1973:


















Capa da 2ª edição de "Alcora, o Acordo Secreto do Colonialismo".

sábado, 24 de setembro de 2016

OS CONFLITOS CONTEMPORÂNEOS E A DOCUMENTAÇÃO (1)


Inicio aqui a publicação de vários textos da minha autoria (ou autoria conjunta, com a devida referência), com a regularidade que me for possível. Espero que possam ser úteis. 

Este primeiro texto é a comunicação que fiz no dia do Arquivo Histórico Militar em 25 de Maio de 2015, a convite do seu diretor, coronel Carreira Martins.


Em primeiro lugar quero agradecer o privilégio de voltar a este lugar, como convidado, neste dia especial.
Por isso as primeiras palavras vão para o Diretor do Arquivo, Coronel Carreira Martins. Digo-lhe que é uma honra regressar a esta casa, que agora é sua, e poder dizer aqui umas palavras, mesmo que muito simples. Muito obrigado.
Cumprimento e agradeço também ao Sr. MGen Santos Carvalho, ilustre diretor da Direção de História e Cultura Militar, que muito tem feito para manter a solidez duma missão tão importante para o Exército e o prestígio dos órgãos e pessoas que a levam a efeito.
Cumprimento todos aqueles que trabalham no Arquivo Histórico Militar e exorto-os a empenharem-se nas suas tarefas, que são tão relevantes como quaisquer outras que o Exército deve cumprir.
Cumprimento também todos os convidados e todos os presentes.

Gostaria de vos falar muito brevemente, de um tema que propus ao diretor do Arquivo. Trata-se dos conflitos contemporâneos e a documentação.
Como sabem, no Século XX, Portugal esteve envolvido diretamente em dois grandes conflitos – a Grande Guerra e a Guerra Colonial. O Exército, através dos seus órgãos e unidades, desempenhou o principal papel.
A Grande Guerra prolongou-se de 1914 a 1918, mas o Exército manteve atividades para lá desta data, até ao regresso definitivo a Portugal, em 1919, das últimas unidades que integraram o Corpo Expedicionário Português.
A Guerra Colonial prolongou-se de 1961 a 1974, tendo o Exército continuado o seu empenho operacional até à data das independências, ou seja, até ao final de 1975.
As duas campanhas têm muito em comum, mas com substanciais diferenças.
Em primeiro lugar o tempo de desempenho é diferente, já que enquanto na Grande Guerra as operações se prolongam de 1914 a 1918, durante cinco anos; e na Guerra Colonial, elas duraram quase quinze anos, do início de 1961 aos finais de 1975.
Em segundo lugar, os teatros de operações têm coincidências, mas importantes diferenças. Um facto aproxima os dois conflitos - em nenhum deles foi envolvido diretamente (como zona de operações significativa) o território nacional europeu. Na Grande Guerra, em relação a Angola, as operações principais situaram-se no sul do território e foram breves, pois estavam praticamente concluídas no início de 1915. Em relação a Moçambique, as operações iniciaram-se mais tarde e prolongaram-se até ao fim da guerra, próximo do final de 1918, e estenderam-se desde a fronteira Norte até ao centro do território.
A Guerra Colonial, por seu lado, teve três teatros de operações principais, Angola, Guiné e Moçambique, sendo que em Angola as operações se desenrolaram sobretudo no Norte e no Leste do território; e em Moçambique, para além da zona Norte, coincidente com a Grande Guerra, as operações atingiram muito profundamente a zona de Tete e também as zonas de Manica e Sofala, já no centro do território, a chamada zona decisiva da guerra.
Mas vejamos ainda mais semelhanças e diferenças entre os dois conflitos. Lancemos para tal, um olhar sobre os efetivos empenhados.
Para os três teatros da Grande Guerra, Portugal mobilizou mais de 100.000 homens, sendo 18.000 para Angola, 30.000 para Moçambique e 55.000 para França. Já para a Guerra Colonial, confiando numa primeira análise, já que falta levantar o número aproximado, Portugal terá mobilizado cerca de 800.000 homens! É este um número impressionante, que implicou a constituição e organização de centenas de unidades, que integraram ou reforçaram os três teatros de operações referidos – Angola, Guiné e Moçambique.
Porventura, esta foi uma situação que não voltará a repetir-se, pelo menos assim o desejamos.
Vista a dimensão destes dois empenhamentos militares, vamos então à questão que gostaria de refletir convosco – a questão da documentação, razão de ser e missão do Arquivo Histórico Militar.
As organizações militares são extremamente burocráticas. Produzem imensos documentos, porque cumprem um conjunto de normas que molda o seu modo específico de estar e de se relacionarem. Aqueles responsáveis que são diligentes, e quero querer que todos o são, e que guardam os documentos, tanto como prova administrativa, jurídica ou operacional (com o fim, que deveria ser o seu, de prova histórica futura) acabam por se ver a braços com uma massa documental enorme, quando terminam as suas missões.
Ora, o caminho a seguir por estas massas documentais não é ainda, infelizmente, bem compreendido por todos. O esforço de todos os responsáveis do sistema de arquivos do Exército deve centrar-se exatamente nesse ponto – salvaguardar, com o fim de prova histórica, os documentos produzidos pelo Exército, nas suas várias missões.
Voltemos então aos conflitos contemporâneos. O panorama documental em relação aos dois conflitos é um pouco diferente. Da Grande Guerra, o Exército preservou um arquivo significativo que parece suficiente como prova histórica. E eu digo parece, porque ninguém, ou muito poucos, pode afirmar se há ou não há faltas graves, coleções muito incompletas, unidades sem memória documental. O que eu quero dizer é que a massa documental que regressou com o C.E.P. ainda não recebeu o tratamento arquivístico que merece, e que eu, em outro lugar, já procurei esclarecer. Por sua vez, as expedições ultramarinas, por correrem pelo ministério das colónias, como as regras de então obrigavam, depositavam os seus arquivos no Arquivo Colonial, atual Arquivo Histórico Ultramarino, onde só agora se vai acedendo a essa documentação. Há aqui, portanto, trabalho a fazer, mas estou certo que o centenário não terminará sem um projeto arquivístico, devidamente suportado, para finalmente sabermos uma parte importante do que se passou com os nossos avós em terras de França, na Grande Guerra.
Tudo é diferente relativamente à Guerra Colonial. A memória documental existente no sistema de arquivos do Exército não corresponde à amplitude do empenhamento militar de Portugal em três teatros de operações, durante quinze anos, com centenas de unidades. Infelizmente, não possuímos as provas documentais correspondentes a esse empenhamento. Verdadeiramente, não possuímos hoje um arquivo completo de um único Batalhão, que tenha cumprido a sua missão de dois anos em qualquer dos teatros de operações. Nestas circunstâncias, não tenho muitas recomendações a fazer, se tal me é concedido. Apenas uma – recolher tudo o que respeita a esse período, se alguma coisa ainda resta (tornando imperativas as transferências para o Arquivo Histórico Militar) e procurar reconstituir, por aplicação dos princípios arquivísticos, como o da proveniência, o sistema de relações da época e dos respetivos fluxos documentais.
Não quero que as minhas palavras sejam interpretadas como qualquer crítica, que não tenho intenção de fazer, mas como um lamento e um alerta.
Se me é permitido então concluir, enquanto temos do C.E.P. uma massa documental que nos deixa tranquilos quanto à sua posse, mas ansiosos por um projeto que organize o fundo documental (ou fundos documentais, logo veremos), relativamente às unidades que participaram na Guerra Colonial ficamos desolados pela ausência quase completa dos respetivos arquivos, que poderiam dar-nos uma mais segura perspetiva do que foram as histórias do seu empenhamento.

De qualquer forma, a tarefas que todos têm pela frente não é fácil, e eu desejo que não a facilitem ainda mais, e possam orgulhar-se, no futuro, do trabalho que executaram em prol da guarda e catalogação da documentação histórica do Exército, que é essa, fundamentalmente, a missão do Arquivo Histórico Militar.

(1) Palavras pronunciadas no dia do Arquivo Histórico Militar, em 25 de maio de 2015

Pátio dos canhões, entrada para o AHM
Livros de registo antigos, uma história por fazer

Aspeto das novas instalações em Chelas
Outro aspeto das novas instalações em Chelas