terça-feira, 27 de dezembro de 2016

HENRIQUE, O NAVEGADOR?



Em 2002, uma revista espanhola pediu-me para escrever um texto sobre D. Henrique, o Navegador. Não era esta decididamente a minha área, mas pareceu-me uma boa oportunidade para alargar um pouco os meus temas preferidos. E sendo o texto publicado em Espanha, não haveria grande repercussão!

Escrevi um texto genérico pois isso me tinha sido pedido, com o título em Português: “Henrique, o Navegador?”, assim mesmo com ponto de interrogação. Mas o tradutor achou que deveria ser erro, e traduziu para: “Enrique el Navegante: la aventura imperial portuguesa”. Nunca tive um exemplar dessa revista, mas sei hoje que se chama “Clio, Revista de História” e publicou o meu texto no seu número 8, em 2002, pp. 84-86.

Deixo aqui o original, em que também participou o meu amigo David Martelo, agora com o título inicial.


Infante D. Henrique, pormenor da Sala do Infante
do Museu Militar, da autoria de José Malhoa.

Apresentar Henrique, o Navegador, é entrar num jogo de sombras, com claros e escuros, ditos e desditos, encenações, controvérsias e paixões. Abra-se a porta ao mito! Ninguém negue as pequenas certezas, mas não reduza ao homem, a mudança do mundo. Estude mais. Visite Lisboa, cabeça da expansão marítima, e Sagres, suposta escola de marinharia henriquina. Vá a Ceuta e Tânger, onde esteve Henrique, mas não faça viagens marítimas nas caravelas portuguesas – Henrique, o Navegador, nunca as fez... Volte ao mundo medieval, mas seja rápido – o mais provável é ficar do lado errado. Regresse aos nossos dias tranquilos e recorde o que viu. Não imponha padrões, não julgue, não aplique sentenças. Tente simplesmente compreender.


Henrique, o Navegador nasceu em 1394, na cidade do Porto. Era o quinto filho do rei D. João I e da rainha D. Filipa de Lencastre, neta de Eduardo III de Inglaterra. D. João I subira ao trono, em Abril de 1385, após um período de dois anos de convulsões internas, em luta com a princesa herdeira D. Beatriz, esposa de João I de Castela, contra a hipótese da união de Portugal com Castela. O futuro D. João I de Portugal, Mestre da Ordem de Avis, encabeçou o partido que se opunha à união, com o apoio da burguesia de Lisboa. A vitória sobre Castela, em Aljubarrota (14-08-1385), consolidou a posição de D. João I e possibilitou o lançamento de uma nova dinastia – a dinastia de Avis. Significativa parte da nobreza portuguesa foi derrotada; a nova dinastia vai criar uma nova nobreza e aceitar a influência política dos mais abastados sectores da burguesia comercial e marítima.

Neste quadro de renovação política nasceu e cresceu o príncipe Henrique. Embora a guerra com Castela prossiga até 1411, já anteriormente a essa data se faziam na Corte portuguesa planos para o futuro. Os novos grupos sociais desejam afirmar-se através de empreendimentos que libertem Portugal do reduzido espaço no Oeste da península Ibérica. A clausura geográfica da época é afirmada pelo cronista Zurara: «Cá nós de uma parte nos cerca o mar e da outra temos muro no reino de Castela». Não podendo crescer para oriente, a Geografia punha o mar como destino dos novos senhores de Portugal.

Concertadas as condições de segurança na fronteira terrestre reforçam-se os olhares ultramarinos. De novo Zurara: “Saber a verdade...da terra que ia além das ilhas de Canária”; “trazer mercadorias, que se haveriam de bom mercado”; “saber o poder do seu inimigo”; “saber se se achariam em aquelas partes alguns príncipes cristãos”; “acrescentar a santa fé”. Dois caminhos complementares, embora opostos foram seguidos pela aventura portuguesa: o Norte de África (trigo, terras, combate à pirataria, domínio do estreito) ou para Sul, ao longo da costa africana (escravos, comércio, especiarias).

D. Henrique acompanhou com grande entusiasmo a ideia de se atravessar o mar e conquistar Ceuta. Embora tendo passado à história como grande impulsionador das navegações, D. Henrique colocou um grande empenho nos empreendimentos militares no Norte de África. De acordo com a tradição medieval, a sua participação, como combatente, na tomada de Ceuta – juntamente com os seus irmãos mais velhos, Duarte (futuro rei) e Pedro – serviria, também, como «prova de fogo» para ser armado cavaleiro.

No regresso da expedição recebeu o título de Duque de Viseu e, em Fevereiro de 1416, o rei deu-lhe o encargo de superintender na governação e defesa de Ceuta. No seu espírito cresceu a ideia de que, a Ceuta, era necessário acrescentar outras conquistas para consolidar a posição portuguesa em Marrocos. Por isso a sua nomeação para governador da Ordem de Cristo, em 1420, representou um impulso para a política de expansão, pelos avultados rendimentos da Ordem. Com esses meios, D. Henrique virou-se por inteiro para as tarefas das conquistas e dos descobrimentos marítimos, não chegando, jamais, a contrair matrimónio.

A primeira fase deste empreendimento vai de 1419 – ano da descoberta da ilha de Porto Santo – a 1437. Desenvolveram-se as técnicas de navegação e a cartografia e definiu-se como objectivo a transposição do cabo Bojador, feito conseguido em 1434, graças aos esforços do navegador Gil Eanes.

O ano de 1437 marca o regresso à política de reforço da presença no Norte de África. D. Henrique foi o principal impulsionador de uma nova expedição militar. Conta com o apoio entusiástico de seu irmão mais novo, o infante D. Fernando, que, tendo nascido em 1402, não tomara parte na tomada de Ceuta por ser, ainda, muito jovem. Prepara-se, assim, uma acção militar para a conquista da cidade de Tânger. A operação está longe de colher a unanimidade. A ela se opõem, entre outros, o infante D. Pedro, irmão do rei e de D. Henrique. A acção militar, capitaneada por D. Henrique, seria um completo desastre, terminando, mesmo, com a captura de D. Henrique e de D. Fernando pelas tropas da guarnição de Tânger. Para poder embarcar de regresso a Portugal, D. Henrique comprometeu-se a devolver a cidade de Ceuta, ficando em Marrocos, refém dessa promessa, o infante D. Fernando. Regressado a Portugal, D. Henrique pressionou o rei D. Duarte I no sentido de não restituir Ceuta. O rei acabou por ceder, deixando o infante D. Fernando no cativeiro até à sua morte, em 1443.

D. Duarte faleceu no ano seguinte. A sua morte prematura deixou o reino numa crítica situação. O filho primogénito – futuro D. Afonso V – tinha apenas 6 anos. A inevitável regência, até aos 14 anos, acarretou conflitos entre partidos, mas o infante D. Pedro acabou por assumir a governação do reino.

Durante o período da regência prosseguiram as viagens de descobrimento, sob a orientação de D. Henrique. D. Pedro, todavia, tinha ideias profundamente divergentes sobre a política de expansão no Norte de África. Mas é D. Henrique quem está mais próximo do príncipe D. Afonso, afastando-o politicamente do tio regente. Ao atingir a idade de governar (1446), D. Afonso V cedeu às pressões políticas hostis a D. Pedro, e afastou o tio da Corte. O processo de intrigas políticas que se seguiu terminou, tragicamente, num confronto armado (Alfarrobeira, 1449) em que morre o ex-regente.
        
     D. Henrique viveu mais 11 anos. As viagens prosseguiram ao longo da costa africana, sendo descobertas algumas das ilhas de Cabo Verde (Cadamosto, 1455-1456) e a embocadura do Geba (Diogo Gomes, 1456). Em 1458, D. Henrique ainda acompanhou o rei na conquista de Alcácer Ceguer. Finalmente, pouco antes da sua morte, em 1460, Pedro de Sintra atingiu a costa da Serra Leoa.

        Em suma, Aljubarrota não tem apenas um significado militar. Ela proporcionou, pela primeira vez na Europa, à escala de um país, a substituição da velha ordem feudal por uma burguesia triunfante. Podem os novos detentores do poder imitar os rituais da tradição, ser armados cavaleiros, reproduzirem encenações, mas não poderão nunca libertar-se daquilo que os distingue – a primazia do negócio, do comércio, do dinheiro. Essa classe subiu ao poder com D. João I, lutou denodadamente pela sua afirmação, resistiu e cedeu, fez compromissos e impôs condições, jogou num xadrez complexo de relações, avançou e recuou, mas nunca mais perdeu de vista os seus objectivos, nunca mais desagregou a sua estratégia, nunca mais largou o seu quinhão de poder. Este jogo de poderes determinou toda a política portuguesa do século XV, recrutou figuras eminentes, produziu decisões de efeitos profundos, levou Portugal à primazia europeia da expansão marítima.
       
Esta nova classe burguesa, nobilitada à maneira medieval, apoiou a paz com Castela (1411), entusiasmou-se com a conquista de Ceuta (1415), opôs-se à expedição a Tânger (1437), optou pelas praças marítimas, reconduziu com persistência o esforço de expansão para as costas ocidentais da África, em busca de ouro, escravos, terras virgens, procurou um caminho novo para a fonte das especiarias orientais.
       
É costume apresentar dois irmãos (D. Henrique e D. Pedro) como pontas de lança de dois conceitos de poder, duas correntes irremediavelmente antagónicas – a velha nobreza tradicional, medieval, cavalheiresca, terra-tenente, e a nova burguesia comercial e marítima, moderna, de vistas largas, precursora de um mundo novo. Nenhum dos extremos tem esta nitidez no século XV português. D. Pedro, ao ser morto em Alfarrobeira, arrasta para o esquecimento grande parte da memória do seu pensamento burguês do mundo; D. Henrique sobrevive na História controverso, nas suas vitórias e nas suas derrotas, lendário como raiz da navegação marítima portuguesa, mito como figura austera, determinada, precursora e navegador...


terça-feira, 20 de dezembro de 2016

A TRANSIÇÃO EM MOÇAMBIQUE FOI DIFERENTE?



A Associação 25 de Abril organizou, em 1984, um seminário sob o tema “25 de Abril, 10 anos depois”. Apresentei nessa altura uma comunicação com o título “Transformação de umas Forças Armadas de guerra em Forças Armadas de paz”. O texto foi depois publicado pela Associação nas respetivas Atas.
Com os factos ainda muito vivos, procurei enumerar os passos fundamentais que demos nesses poucos meses de transição, entre o Acordo de Lusaca (7 de Setembro de 1974) e a independência de Moçambique (25 de Junho de 1975). É esse tempo que recordo ao publicar o texto referido.


Victor Crespo, alto-comissário e Joaquim Chissano,
primeiro-ministro do Governo de Transição.
Ambos souberam interpretar o sentido do Acordo de
Lusaca e o aplicaram em conformidade. Foto de Carlos Gil.

Em Moçambique, após os incidentes de 7 de Setembro e de 21 de Outubro de 1974, foi possível chegar ao fim do período de transição num clima de tranquilidade social. Não se pense que foi um processo simples. O instrumento fundamental para o clima de paz que se viveu durante os oito meses que medeiam entre o fim de Outubro e a independência de Moçambique foram as Forças Armadas de ambos os lados e a surpreendente capacidade de integração entre ambas.

Quando se assinou o Acordo de Lusaca, as Forças Armadas Portuguesas estavam destroçadas. Elas acabavam de viver dois períodos contraditórios entre si, e também contraditórios no próprio conteúdo de cada um. Em 25 de Abril de 1974 as Forças Armadas apresentavam evidentes sinais de cansaço e perturbação. Cansaço pelo esgotamento físico e anímico dos quadros, pela degradação da instrução, pela tendência nivelante dos potenciais de meios, especialmente na componente aérea, com o aparecimento dos mísseis terra-ar, e pela acção do Movimento de Capitães, que logicamente perturbava as cadeias de comando.

Após o 25 de Abril, os sinais e os motivos deteriorantes multiplicaram-se em cadeia. Primeiro, a hierarquia, de uma forma geral, não aceitou a mudança, nem compreendeu o sentido descolonizador do Programa do MFA. Mais, tentou ajustar-se através de alterações de superfície, mantendo o comportamento essencial do período anterior. Segundo, as tropas interpretaram o 25 de Abril no seu sentido mais amplo, sem consideração de etapas intermediárias — o fim da guerra e o regresso imediato foram os objectivos rapidamente assumidos. Terceiro, o MFA, embora com alguns pontos de vista não coincidentes no seu interior, procurou fazer compreender à hierarquia e às tropas o verdadeiro sentido do 25 de Abril. À hierarquia explicando que o MFA, não preconizando embora independências imediatas, era um movimento que pretendia conduzir à solução política dos conflitos, questão evidentemente relacionada com a provável independência do Ultramar. Às tropas, tentando fazer compreender que o MFA, embora desejasse apressar a paz, não podia fazê-lo sem considerar outros objectivos e outros valores que lhe eram complementares.

Não é de admirar, por tudo isto, que as Forças Armadas tivessem chegado ao Acordo de Lusaca numa situação penosa, profundamente perturbadas e com fracas reservas morais e psicológicas. Mas o acordo de Lusaca funcionou como um poderoso antídoto injectado nas Forças Armadas.

O conhecimento do cessar-fogo oficialmente assinado e a marcação da data da independência, com a inevitável transformação da natureza das funções das Forças Armadas, puderam constituir o embrião da recuperação que um novo comando, com prestígio e decidido, pôde operar em dois escassos meses. É nestes dois meses, de meados de Setembro a meados de Novembro que se faz a transformação de um corpo disperso e sem vontade numas Forças Armadas dispostas a enfrentar as tarefas, não menos difíceis e arriscadas, de contribuir e garantir a aplicação do Acordo de Lusaca.

As medidas tomadas, parecendo simples, não foram fáceis. Em primeiro lugar, foi adaptada a cadeia de comando, através da mudança de pessoas, da simplificação de processos e da regulamentação da cadeia do MFA, em moldes específicos, mas operativos. Aliás, o facto de alguns elementos do MFA terem aceitado acompanhar o Alto-Comissário na sua missão a Moçambique, viria a confirmar-se como um inestimável contributo para os resultados alcançados. Em segundo lugar, foi esclarecida a doutrina de actuação, os objectivos a atingir, os processos a empregar e o comportamento que deveria presidir à nova missão das Forças Armadas. Em terceiro lugar, aplicaram-se sucessivas alterações de dispositivo, adaptando as unidades no terreno, às missões atribuídas. Em quarto lugar, intensificou-se uma aproximação de comandos e uma extensa e oportuna acção de esclarecimento e informação interna das tropas, normalmente efectuada pela estrutura do MFA. Esta política deu efeitos surpreendentes. A colaboração Forças Portuguesas/Forças da Frelimo processou-se praticamente sem perturbações, com experiências de convívio nos mesmos quartéis e nas mesmas condições.

As comissões mistas (Comissão Militar Mista e as suas delegações regionais) funcionaram quase sempre em perfeita harmonia, solucionando por comum acordo, os conflitos e os problemas que inevitavelmente foram surgindo. Um primeiro ciclo de aprendizagem de algumas questões técnicas foi de imediato proporcionado a elementos da Frelimo, num verdadeiro espírito de cooperação resultante do Acordo de Lusaca — infraestruturas da Marinha e da Força Aérea e formação de quadros e tropas de polícia. A redução do dispositivo das Forças Portuguesas, a passagem do testemunho às Forças da Frelimo e o embarque de regresso a Portugal processaram-se igualmente sem incidentes assinaláveis.

A aproximação de pontos de vista, a aceitação e o diálogo eram de tal forma um facto, que o comando português, a pedido da Frelimo elaborou um documento de reestruturação (de Forças de Libertação em Forças Regulares) das futuras Forças Armadas de Moçambique — Exército, Marinha e Força Aérea. A parte portuguesa dispunha-se mesmo a participar, pelo tempo que fosse necessário, nessa reestruturação, que a parte moçambicana sabia fundamental para a sua sobrevivência como país independente. Infelizmente, questões de vária ordem vieram a impedir essa cooperação, que teria sido, a todos os títulos de importância excepcional.

Repare-se contudo, que alguma coisa foi aplicada, como corolário deste espírito cooperante — a Polícia Portuguesa permaneceu em Moçambique durante seis meses para além da independência, facto que normalmente é desconhecido. E durante esse período não houve significativas perturbações sociais ou políticas.

Em suma, a transformação das Forças Armadas Portuguesas de instrumento de guerra em instrumento de paz e cooperação, constituiu o suporte de uma política de transição eficaz e a garantia de uma transferência de poderes, desenvolvida nos exactos termos acordados em Lusaca.


Ver em:
“Transformação de umas forças armadas de guerra em forças armadas de paz”, Associação 25 de Abril (Org.), Actas do Seminário 25 de Abril, 10 anos depois, pp. 339-340.





sexta-feira, 16 de dezembro de 2016

COOPERAÇÃO COM ÁFRICA - SÃO OS PROBLEMAS ETERNOS?



A propósito de alguns dos problemas que nos assolam hoje em dia, lembrei-me de um texto que publiquei em 1992, há portanto 24 anos, num volume de Atas de um colóquio organizado pela Universidad Nacional de Educación a Distancia (UNED), em Mérida, que se chamou “Portugal, España y Africa en los últimos cien años”.

Há pequenos detalhes que talvez corrigisse hoje, mas no essencial revejo-me nas ideias que aqui reproduzo.


Dois modelos de descolonização

Durante o período da descolonização surgiram em Portugal dois modelos principais para a independência das colónias. Um deles, projecto lógico do pon­to de vista dos interesses imediatos do descolonizador, preconizava a imposi­ção de condições prévias, como garantia do empenhamento português. Os futuros países deveriam assegurar certo tipo de transição, conceder certas van­tagens e privilégios a Portugal e aos portugueses, integrar determinadas regras e princípios. Era um projecto lógico, mas evidentemente inexequível.

O outro modelo, baseado na análise directa dos factos, pretendeu preser­var, de forma indirecta, a continuidade portuguesa, sem que, para isso, fosse necessário impor qualquer condição prévia, antes argumentando com as van­tagens mútuas de certas ligações e da manutenção de certos princípios. Era um modelo imposto pela situação que se vivia depois do 25 de Abril.

A imposição de condições prévias configurava um modelo neocolonial, já aplicado à África por outras potências europeias, e era assumido pelas forças conservadoras e pelos interesses económicos, em especial os que estavam im­plantados em África. Durante alguns meses o seu representante privilegiado foi o general Spínola.

O modelo da descolonização consensual foi assumido pelo MFA e pelas forças de esquerda dessa época. Foram estas forças que vieram a sobrepor-se às primeiras e a assumir, pela parte portuguesa, o papel que lhes coube na descolonização.

Os factores essenciais que motivaram este posicionamento poderão resumir-se:

· Existência de movimentos de libertação nos cinco territórios africanos que, ou tinham conduzido uma guerra prolongada contra o poder co­lonial, ou tinham, pelo menos, assumido o combate contra a presença portuguesa;
· Certa sintonia ideológica entre os representantes das partes envolvidas;
·  Fragilidade política e militar de Portugal no momento crucial das ne­gociações de transferência do poder;
· Modelo dominante das relações internacionais baseado na capacidade de intervenção directa das grandes potências, em especial da União So­viética.

Desta primeira fase resultou um modelo novo de descolonização europeia, no qual as imposições da Metrópole foram reduzidas a um nível mínimo, ain­da assim baseadas no princípio da mútua vantagem.

É evidente que este modelo é hoje muito discutível, tanto nas razões que o impuseram, como nas consequências que em geral lhe são imputadas.

Aliás, desde muito cedo, poucos foram os que souberam discernir as van­tagens da aplicação do modelo português. A maior parte das vezes perdeu-se, talvez por uma má consciência politicamente insuportável, a noção das virtualidades contidas nas relações resultantes da aplicação do modelo consensual de descolonização. O Estado português, durante um longo período após a des­colonização, não soube transformar em projectos concretos de cooperação, as condições potencialmente favoráveis que herdou do período da descoloni­zação. Foi necessário esperar alguns anos até ser assumido o chamado «prag­matismo» nas relações com os novos países africanos. De uma forma geral chegou tarde, mas pôde ainda recuperar algumas daquelas virtualidades.


Deverá a democracia servir de moeda de troca?

O panorama africano é hoje profundamente diferente da situação da década de setenta e início da década de oitenta. De facto, no final da última década aconteceu uma viragem de profundas repercussões não só para África mas para o mundo inteiro. A desintervenção das grandes potências trouxe ao de cima novas realidades em África, fustigada por uma insuperável crise económica que vincava ainda mais a sua situação de região mais pobre do planeta.

As mudanças no Leste Europeu criaram, no Ocidente, a ideia, mais uma vez eurocentrista, de que a solução dos problemas do mundo se reduzia à exportação do sistema político a que ela própria aportara, depois de vários séculos de experiências e de muitas opções falhadas.

A solução democrática em África, defendida pelo liberalismo ocidental e aceite por muitos dos regimes africanos, está envolvida por uma componente de desespero pela parte destes, em face da ineficácia de todas as soluções anteriormente tentadas. Mas será o desespero um bom companheiro da democracia?

Embora muito aplaudida, esta onda de democratização em África é uma hipótese ainda não testada, ou com testes de resultados pouco aliciantes. Contrariamente ao processo histórico europeu (ou melhor, ocidental), onde a democracia é o resultado final de uma longa evolução, em África ela prepara-se para ser o início dum processo histórico novo, querendo esquecer ou ignorar as raízes do modo de estar africano.

Pior, porém, que esta experiência impulsionada pelo Ocidente, parece ser a posição de alguns países colocados na vanguarda deste combate pela importação da “nova” solução. De facto, enquanto no passado recente as ajudas económicas e de cooperação em favor dos países africanos se baseavam em critérios diversos, que iam desde a vantagem mútua até à afirmação de esferas de influências preventivamente conservadas, muito recentemente parece pretender-se que o critério base para o desenvolvimento da política de cooperação, seja a instauração de regimes democráticos.

Parece evidente que restarão poucas alternativas que não pareçam irrealistas, ou mesmo absurdas. Contudo, se a África deve preparar os processos democráticos, a Europa deve preparar-se para assistir, provavelmente, ao fracasso das suas tentativas de impor um modelo que, em princípio, só acasala com a prosperidade.

Uma vez iniciadas as transformações internas preparatórias da mudança de regime, a que os dirigentes actuais das ex-colónias portuguesas têm respondido com muita disponibilidade, parece indispensável não impormos mais uma condição prévia, aceitando os resultados das eleições, mesmo que possam parecer desfavoráveis aos nossos secretos desejos.

O modelo de valores dos povos africanos é substancialmente diferente do nosso, apesar da contínua assimilação de heranças deformadoras da sua ancestralidade. A questão das fronteiras nacionais é sem dúvida uma questão de grande sensibilidade, que impõe cortes dolorosos, mas não impede a sobrevivência, e mesmo a predominância, de indestrutíveis ligações transnacionais. Um outro problema prende-se com a adopção das línguas europeias, não apenas como línguas oficiais, mas sobretudo como línguas maternas. Os novos dirigentes africanos sabem como esta mudança se torna indispensável, mas desconhecem os riscos que ela encerra.

A questão das línguas é, de facto, de fundamental importância para os novos países africanos, uma vez que a adopção de uma língua comum se transforma num factor de unidade interna, assim como num factor de diferença em relação a países vizinhos.


Europa suportada pela África e América,
William Blake, 1796
Não deverá a cooperação basear-se na mútua vantagem?

Analisada do ponto de vista estritamente económico, a cooperação com a África não parece fundamental para a Europa. Se na época do colonialismo a necessidade de matérias primas comandava o tipo de relações estabelecida com África, a verdade é que hoje esse factor deixou de pesar da mesma maneira. Não é mesmo muito difícil imaginar a possibilidade de um corte económico com África sem graves prejuízos para a Europa. Contudo, cada vez mais as interdependências se multiplicam, obrigando a uma reflexão aprofundada sobre as relações planetárias. Embora na Europa o nível actual de consciência das dependências seja ainda muito difuso, parece não restarem dúvidas que começa a manifestar-se com maior vigor. Existe, de facto, maior percepção do carácter global de certas políticas e de certas situações, que, sem ultrapassarem formalmente o âmbito dum país ou duma região, podem estender a suas consequências a áreas muito mais vastas.

Há dois campos que poderemos destacar (sem a pretensão de os eleger como determinantes), numa primeira aproximação a este problema da interdependência mútua e da globalização planetária. O primeiro prende-se, muito naturalmente com a ecologia, na sua componente da desflorestação e respectivas consequências climáticas. O mundo industrializado começa a ter consciência da importância da manutenção de certos equilíbrios, só possível com participação de muitos Estados do terceiro mundo, incluindo os africanos. Assente neste princípio, a cooperação apresenta-se baseada na mútua vantagem, único modelo capaz de sustentar a sua eficácia.

O outro campo apresenta-se ainda mais difuso na consciência europeia mas parece capaz de ser rapidamente compreendido. Trata-se da questão das migrações. É sabido que as populações de zonas desfavorecidas tendem a transferir-se para zonas mais ricas. Este fenómeno poderá produzir-se em pequena escala, medida hoje em milhares de pessoas, fenómeno necessário normalmente desejado por ambas as partes e até fomentado, ou poderá eventualmente assumir características de migração maciça, medida em milhões de pessoas, fenómeno preocupante e indesejável em especial pelas regiões de destino. Face à situação actual da África não parece de excluir uma tendência migratória que venha a assumir essas dimensões e cujo destino seja exactamente a Europa.

Salientados estes aspectos de tendente globalização dos fenómenos humanos, parece justificada a atenção que nos devem merecer as políticas de cooperação com África. Os investimentos realizados neste âmbito podem amplamente justificar-se pela necessidade mútua de estabilização das populações, assim com da manutenção de níveis baixos de desarborização. Os auxílios europeus têm de perder o carácter de interferências para se transformarem numa aplicação de mútua vantagem, facilmente compreensível pelas populações de ambos o lados.

Relativamente aos casos especiais de Angola e Moçambique, devemos ter presente a situação concreta, onde a procura da paz aparece como objectivo prioritário. Os esforços de todos os intervenientes dirigem-se para a obtenção, no mais curto prazo, de compromissos de cessar-fogo, por forma a que se possam criar condições básicas de aplicação de planos de desenvolvimento. Nesta situação, a exigência de um espírito aberto por parte dos europeus em relação às necessidades destes povos, é ainda mais premente. Uma atitude pragmática, fugindo da imposição de condições, sem deixar de defender princípios, é aqui ainda mais necessária. Não podemos esquecer que lidamos com países extremamente carenciados, embora singularmente aptos a assumirem a experiência democrática.

Retirar a estes países fundos de ajuda e cooperação, só porque os processos de mudança não estão concluídos ou podem parecer demorados, é matar à nascença a hipótese, provavelmente mais viável aqui do que em muitas regiões de África, de êxito da experiência democrática, tão do agrado do sentimento europeu actual.


Nota: Publicado inicialmente em “Portugal, España y Africa en los últimos cien años – IV Jornadas de Estudios Luso-Españoles”, Mérida, Universidad Nacional de Educación a Distancia, 1992, págs. 165-169.




terça-feira, 13 de dezembro de 2016

ONDE ANDAM OS FLAMINGOS DOURADOS?



Em Junho de 2004 tive o privilégio de apresentar o romance do Carlos Vale Ferraz, “Flamingos Dourados”. Lembrei-me deste texto a propósito de um escrito recente que este autor publicou na revista InComunidade, que aliás muito recomendo: http://www.incomunidade.com/v51/art.php?art=274

Fui buscá-lo e aqui o deixo. Não cheguei ao ponto de apresentar o autor como um mágico, mas julgo que não fiquei muito longe…

Julgo que este livro será muito difícil de encontrar, mas vale a tentativa.

  
(…)

Se viesse aqui falar do Carlos de Matos Gomes e da obra que com ele tenho feito, seria para mim muito fácil.

Falar do Carlos Vale Ferraz é mais difícil. Eu sou um leitor assíduo – desde o clássico “Nó Cego”, passando pela primeira “ressaca” da guerra, “De Passo Trocado ASP”, pelo espantosa crónica do soldado esquecido “Soldadó”, pela segunda ressaca dos “Imortais” ou “Os Lobos não usam Coleira”, do enigmático escrito sobre os “Anais dos Tristes Acontecimentos do Milénio” ou “O Livro das Maravilhas”, que alguém melhor que eu pode descodificar, até chegar à obra que hoje aqui nos reúne -  “Os Flamingos Dourados”.

Também sou um incondicional leitor e concordante das pequenas crónicas com que o Carlos Vale Ferraz por vezes nos brinda na imprensa diária, reflexões sobre a situação actual.

Tenho sido porta-voz de um alargado conjunto de amigos para que o Carlos de Matos Gomes se deixe de outras coisas e passe simplesmente a escrever. E que assine com o nome que bem entender. Não tenho conseguido grande êxito, mas assisti a pequenas partes da construção das suas duas últimas obras.

Estamos portanto situados:
Tenho trabalhado com o Carlos de Matos Gomes de quem sou amigo, leio o Carlos Vale Ferraz, que muito aprecio, e incito o primeiro a convencer o segundo a escrever mais.

Vamos agora ao que mais interessa – “Os Flamingos Dourados”. É a terceira ressaca da guerra colonial. Para mim foi uma surpresa, pois não era esta perspectiva que eu esperava. Depois de ler, compreendi. O Carlos Vale Ferraz está cada vez mais próximo do Calos de Matos Gomes.

Vou apenas focar dois aspectos interessantes dos “Flamingos”.

Em primeiro lugar:
O capitão Francisco Manuel fez a guerra em Angola, como alferes, em 1961, na Companhia dos Aventureiros e é capitão de Abril. É filho do coronel Luís Manuel que esteve na Índia e foi adido militar em Londres. Aí casou com Mary Wilson, filha (descendente) de John Wilson, destacado membro da Maçonaria. Francisco Manuel é um dos prováveis portadores (talvez pouco provável) de um “Diamante Azul”, vindo das profundezas da história de Portugal, irmão-paralelo de um outro Francisco Manuel, guerreiro e escritor do século XVII e das campanhas da Restauração, Francisco Manuel de Melo. Tem como ajudante, na sua fase actual de afectado pelo stress de guerra, um cabo Matos (este Matos dá-me que pensar) que vem a ser assassinado, em vez do seu capitão, porque alguém procura o “Diamante Azul”.

Este “Diamante Azul” foi levado por D. António Prior do Crato, quando perdeu o reino para Filipe II. Era a mais importante jóia da coroa portuguesa, símbolo da independência, transformando-se numa espécie de Santo Graal. Apesar de tudo, ficou desde então na família, e foi parar ao seu descendente Humberto Crato (que passou para a oposição e morreu assassinado em Espanha). A trama a seguir não interessa, porque é o fio condutor do enredo. Como verão quando lerem, trata-se de discutir a questão do poder. Ou melhor – a questão da origem do poder. Este foi o problema mais longamente discutido depois de 1640, também com intervenção do primeiro Francisco Manuel; mas como sabem, foi também um dos principais enredos em que todos nós nos envolvemos nos idos de 1974 e 1975, com a activa participação do segundo Francisco Manuel. O “Diamante Azul” andou por aí, passou para Espanha, foi à mão de um escritor panfletário, que, apesar disso, nunca o viu; terá feito parte dos trastes do nosso capitão Francisco Manuel; foi à mão do presidente da Fundação O Homem e a Obra para ser exibido na exposição com o título “Esplendor de Portugal – Nós e os Outros”, durante o seu Congresso “As Conferências do Milénio”. Mas, para alívio de todos, incluindo a maior parte dos que estão nesta sala, este diamante da exposição é falso. O verdadeiro vai seguir o seu caminho, e para saberem onde fica, têm que ler o livro.

A propósito, suponho que o verdadeiro John Wilson existiu, tornando-se famoso nos meios intelectuais e científicos ingleses no primeiro terço do século XIX. Tanto poderia ser bisavô do nosso Francisco Manuel, com descendente dos contemporâneos de Francisco Manuel de Melo. Se foi da Maçonaria não consegui averiguar, mas o seu pensamento e a sua escola podem levar-nos a essa conclusão.

Vamos agora ao segundo ponto que gostaria de trazer aqui. Já falei de um escritor panfletário – é o Manuel Costa. O seu grupo, os Manuelinhos, é uma criação genial (lembram-se do Manuelinho de Évora, doido muito conhecido e estimado na cidade, e em nome de quem se escreviam os panfletos incendiários contra os castelhanos, durante a fase final do período filipino?). No grupo temos portugueses, como o padre capelão Nuno Maria (capelão dos Aventureiros e padre da paróquia de Agualva-Cacém com carta de despedimento do bispo), o capitão Francisco Manuel, que faz lá uma perninha, um espanhol – o Francisco Quevedo, e um inglês – o Ned Marchmont. Vejamos estes dois.

Todos conhecemos o Francisco Quevedo, contemporâneo de Francisco Manuel de Melo, escritor espanhol do século XVII. Foi perseguido, esteve preso, escreveu poesia e verdadeiros manifestos políticos, pouco comuns na época. Em 1635 os seus inimigos publicam em Valência, o maior e mais feroz ataque ao escritor – um libelo intitulado “O tribunal da justa vingança”. Posso pedir-vos para se lembrarem deste título, quando lerem “Os Flamingos Dourados”. Nesse manifesto, Francisco Quevedo é denunciado como “mestre de erros, doutor em desvergonhas, licenciado em bobo, bacharel em “suciedades”, catedrático de vícios e protodiabo entre os homens”. Portanto, um digno companheiro dos manuelinhos, obreiros de panfletos incendiários.

E agora o inglês. O personagem dos “Flamingos Dourados” chama-se Ned Marchmont. O contemporâneo do nosso Francisco Manuel de Melo do século XVII, que bem poderia ter estado em Portugal, chama-se Marchmont Nedham. Ambos são jornalistas. O personagem esteve em Angola com Os Aventureiros, onde conheceu o então alferes Francisco Manuel; depois da revolução veio a Portugal e voltou sempre ao seio do seu grupo de amigos. Persegue a história do “Diamante Azul”. Todos o irão apreciar quando lerem o livro. O verdadeiro, foi o jornalista favorito de Cromwell. Fez parte de um grupo de pensamento que veio a apelidar-se de neo-romanos, que teve como ambiente de fundo a proclamação da Inglaterra como estado livre, onde fez companhia a John Milton. Ambos publicaram uma série de editoriais no periódico oficial “Mercurius Politicus” que construíram os alicerces para o nascimento, em Inglaterra, de uma teoria republicana da liberdade e do governo até 1656. Quando teve de explicar por que se tinha tornado jornalista, Marchmont Nedham (o Ned Marchmont do nosso livro) afirma simplesmente: “Eu peguei na pena para discordar de Sua Majestade... e para deitar fora máscaras, servidões e disfarces”.

Pela minha parte só tenho que vos aconselhar a acompanharem este espantoso grupo através da escrita do autor que aqui nos reúne – o Carlos Vale Ferraz.

Outros aspectos, e aquele título do manifesto contra Francisco Quevedo não me sai da lembrança – O tribunal da justa vingança - vamos com certeza abordá-los durante a nossa conversa.

Um último ponto. O narrador, o procurador geral da República, Serafim Forte, recebe a primeira mensagem de Manuel Costa juntamente com os seus escritos dispersos, com os quais pretende denunciar a situação a que Portugal chegou. O seu pedido é sugestivo: “Preciso que organizes um livro. Pode ter a forma de romance (até conviria, porque na ficção podem dizer-se as verdades com maior liberdade e menor risco)”. Espero que apreciem como se dizem as verdades num romance. É que a História não serve de nada se não a utilizarmos na nossa acção.


E o que é espantoso neste “romance” é o enlaçamento entre história e ficção, entre duas épocas igualmente tumultuosas, entre três faces de um poliedro invulgar – a transição filipo-restauração (ou seja a história) com nomes reais (Francisco Manuel de Melo, Diogo Soares, Miguel de Vasconcelos); a guerra-revolução-transição em que nós estivemos envolvidos (com nomes paralelos trazidos do tumulto restaurador) e o romance, em que personagens de natureza, atitudes, convicções e ideias paralelas às dos nossos antepassados, vagueiam por entre nós (e ainda por cima, temos quase a certeza de os conhecermos, encerrando este “quase”, a prudente incerteza da ficção).


domingo, 11 de dezembro de 2016

GUERRA COLONIAL - ARQUIVOS DO SILÊNCIO?



Nesta 2ª Parte do texto sobre os arquivos militares procuro dar alguma informação sobre os seus fundos principais, assim como sobre a documentação relacionada com a Guerra Colonial que pode ser consultada. Espero que seja útil ainda hoje.


Entrada no Arquivo Histórico Militar,
Pátio dos Canhões do edifício do Estado Maior
 do Exército, junto a Santa Apolónia.
Parte 2


Feita esta longa introdução, gostaria de vos falar sobre os arquivos militares, tema da minha intervenção.

Existem em Portugal quatro Arquivos Históricos no âmbito da Defesa e Forças Armadas. Um do próprio Ministério e um para cada Ramo das Forças Armadas – Marinha, Exército e Força Aérea.

Marinha – Arquivo Histórico da Marinha - AHMarinha
Exército – Arquivo Histórico Militar - AHM
Força Aérea – Arquivo Histórico da Força Aérea - AHFA
Ministério – Arquivo da Defesa Nacional - ADN

Até ao Século XIX, na estrutura da Estado Português, os assuntos da Guerra e dos Negócios Estrangeiros estiveram juntos na Secretaria de Estado dos Negócios Estrangeiros e da Guerra. Esta circunstância reflectiu-se na separação da documentação entre as entidades (AHM, AHD e Arquivo Nacional), quando estas se separaram, depois da revolução liberal de 1820. Se tivermos em conta que o Arquivo Histórico Diplomático só foi criado na segunda metade do Século XIX, pode imaginar-se como são importantes os guias de fontes para hoje podermos saber onde estão os fundos documentais da Administração Portuguesa.

Sala de leitura do Arquivo Histórico da Marinha,
situado no edifício da Cordoaria, Rua da Junqueira.

Mas também os assuntos da Marinha e das Colónias estiveram juntos na Secretaria de Estado dos Negócios da Marinha e Colónias. Os documentos foram depois distribuídos entre o Arquivo Histórico da Marinha e o Arquivo Colonial (hoje Arquivo Histórico Ultramarino), sem esquecer que muita da documentação da estrutura administrativa do Estado foi absorvida pelo Arquivo Nacional.

O Ministério da Defesa só foi criado em 1950, apenas como órgão de planeamento. Só em 1974 assumiu em pleno a sua função política. A Força Aérea foi criada em 1952 como Ramo autónomo, herdando as tradições da Aeronáutica Militar, mas não recebendo a sua documentação que ficou no Exército.

Em resumo, as datas de criação dos Arquivos deixam-nos perceber as dificuldades arquivísticas de uma visão de conjunto:

Arquivo da Marinha – 1843 (como arquivo administrativo);
Arquivo Militar – 1802 (apenas para os mapas, as cartas topográficas e as plantas de engenharia);
Arquivo Histórico da Força Aérea – 1952;
Arquivo da Defesa Nacional – 1996.

Ainda hoje, apesar do esforço feito na normalização da actividade dos arquivos, não existe um guia cruzado que oriente o investigador neste emaranhado de heranças.

A missão destes Arquivos é comum, visando essencialmente a recolha, preservação, tratamento e divulgação da documentação histórica de cada sector, de acordo com as normas em vigor.

A gestão dos Arquivos militares tem muita autonomia, não existindo qualquer órgão de coordenação comum. Todos se orientam pelas normas nacionais e internacionais em vigor, procurando seguir as orientações do Arquivo Nacional.

O Arquivo Histórico da Marinha está instalado no edifício da antiga Fábrica de Cordoaria, em Lisboa. Em conjunto com o respectivo arquivo intermédio, ocupam 2.000 m2 de superfície e possuem 7.000 metros de prateleira. Tem alguns documentos dos séculos XVII e XVIII, mas a sua documentação respeita essencialmente aos séculos XIX e XX.

Os seus fundos mais importantes são: Diários de bordo, planos e projectos de construção naval, cartografia naval e Guerra Colonial.

O Arquivo Histórico Militar está instalado no edifício do Estado-Maior do Exército, em Lisboa (Antigo Arsenal do Exército), e na antiga Fábrica de Pólvoras de Chelas. Ocupa uma área de 2.000 m2 e tem 8.000 metros de prateleira. Tem alguns documentos desde o Século XVI, mas a sua documentação é significativa desde meados do século XVIII até à actualidade. Existem planos para uma transferência de instalações.

O arquivo intermédio do Exército está instalado no Convento de Chelas em Lisboa, e possui 21.000 metros de documentação. Toda a população masculina portuguesa tem registos desde meados do Século XIX.

Fundos históricos mais importantes: Guerra Peninsular (1807-1814), Lutas Liberais (1820-1851), Grande Guerra (1914-1918), Guerra Colonial (1961-1975).

O Arquivo Histórico da Força Aérea está instalado no edifício do Estado-Maior da Força Aérea em Alfragide, próximo de Lisboa. Ocupa 300 m2 e tem 1500 metros de prateleira. Tem documentação do Século XX.

Aspeto do Arquivo Histórico da Força Aérea,
 situado no edifício do Estado Maior
da Força Aérea, em Alfragide.

Fundos mais importantes: Unidades da Força Aérea, Guerra Colonial, Colecção fotográfica, incluindo fotografias aéreas de Portugal.

O Arquivo da Defesa Nacional está instalado numa unidade militar (Centro Militar de Electrónica) em Paço d’Arcos, próximo de Lisboa. Ocupa uma área de 700 m2 e tem 4.000 metros de estante ocupada. A sua documentação é da segunda metade do Século XX.

Fundos mais importantes: NATO (1949-1975), Guerra Colonial (1961-1975) e Fundos do Ministério da Defesa (1950-1975).

Todos os Arquivos têm um regulamento devidamente aprovado, que fixa as normas de avaliação, selecção e eliminação de documentos. Estes regulamentos parciais devem ser aprovados pela Direcção Geral de Arquivos (órgão governamental).

Todos os Arquivos estão abertos à leitura, com acesso diário, em sala apropriada. As normas são bastante semelhantes. Na Força Aérea é necessário um contacto prévio.

Os Arquivos procedem à desclassificação de fundos e documentos, de acordo com as normas gerais da administração pública portuguesa, embora com pouca eficiência; todos têm formas de divulgação das suas actividades, pelo menos através da Internet; de uma forma geral procedem a algumas investigações simples a pedido dos leitores.

Todos os Arquivos têm falta de pessoal especializado. As massas documentais são muito grandes e só muito recentemente a avaliação está a ser feita na origem. As normas de abertura da documentação e de acesso são muito genéricas, havendo nesse campo dúvidas comuns. As classificações de segurança, muito comuns na documentação militar, dificultam a abertura dos fundos, não havendo ainda uma norma de desclassificação simples e efectiva, ao nível dos arquivos históricos.

Todos os Arquivos têm divulgação através da Internet, com página especial, como segue:


Nos últimos vinte anos, os Arquivos Militares Portugueses fizeram um grande esforço para cumprirem as suas missões e para se modernizarem. Mas têm ainda um longo caminho a percorrer.

Agora, uma palavra sobre a Guerra Colonial, na sua relação com estes Arquivos.

Como verificaram, a Guerra Colonial é em todos os arquivos militares, um dos fundos mais importantes. Mas até 1997, o acesso a estes fundos era muito limitado. Ainda hoje existem algumas limitações, não contempladas pela lei geral do acesso aos documentos da administração pública.

Limito-me aqui a falar do Arquivo Histórico Militar e do Arquivo da Defesa Nacional, que conheço melhor. Ambos têm diversos fundos sobre a Guerra Colonial, todos acessíveis.


Cartaz utilizado na Ação Psicológica na
Guerra Colonial, existente no
Arquivo Histórico Militar.
No AHM são essenciais os fundos respeitantes aos três territórios onde a guerra colonial teve lugar – Angola, Guiné e Moçambique. Estes fundos foram separados como colecções de documentos, sem qualquer preocupação organizativa. É necessária alguma paciência para encontrar o que procuramos. Nenhum tem inventário, sendo o acesso feito através de ficheiros manuais.

Foram recentemente abertos dois fundos [em 2006] (Repartição de Gabinete do Ministro da Guerra/Ministro do Exército e Repartição de Gabinete do Chefe de Estado-Maior do Exército) essenciais para o conhecimento e a investigação deste período. Estão organizados segundo as normas e têm inventário, o que facilita enormemente a pesquisa.


Edifício onde está instalado o Arquivo da Defesa
 Nacional, no Centro Militar de Electrónica,
em Paço de Arcos, à espera de ter casa própria.

No que respeita ao ADN, a sua importância para o período da Guerra Colonial é muito grande. Toda a documentação do período da guerra está acessível, embora apenas uma parte possua inventário. A grande massa documental respeita ao Secretariado Geral da Defesa Nacional, cujo acesso é feito através de um registo digital com descrições bastantes pobres. Mas o fundo do Gabinete do Ministro está já definitivamente organizado e possui inventário.

O que essencialmente está a faltar é o trabalho de investigação. Os instrumentos colocados à disposição dos investigadores são bastantes razoáveis. O que todos esperamos é que o assunto mereça cada vez mais interesse da Universidade e do público em geral. O que mais satisfaz os responsáveis por estas instituições é que as suas salas de leitura estejam cheias.

A forma como em Portugal se relembraram (e continuam a relembrar) os 50 anos do início da Guerra Colonial faz-nos crer que o interesse por este período recente e marcante da vida nacional venha a reflectir-se na frequência dos Arquivos militares.